A IMPORTÂNCIA DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NA FORMAÇÃO DO EDUCADOR

Dermeval Saviani

1. Palavras iniciais (aposentadoria e excesso de trabalho).
2. Abordagem anterior do tema: a exposição , em colóquio anterior, sobre a relação entre filosofia da educação e história da educação onde se mostrou a origem comum das duas disciplinas, a sua posterior separação, indicando-se como elas podem se influenciar reciprocamente de forma positiva; ainda nessa exposição se retomou o texto “Contribuições da filosofia para a educação” o qual registrava as seguintes contribuições: a) configuração do objeto; b) determinação do enfoque; c) redescoberta do objeto; d) vigilância crítica; e) acesso aos clássicos; f) concepções de filosofia da educação; g) clareza conceitual e terminológica.
3. A abordagem de hoje: uma tentativa de compreender a situação atual caracterizada de forma genérica como sedo marcada pela crise de paradigmas.
4. Ora, as situações de crise são épocas propícias para a filosofia, já que nos obrigam a compreender as raízes da crise e pensar alternativas à sua superação.
5. Mas, independentemente das crises, parece mais ou menos evidente a importância da filosofia e da história da educação para a formação do educador.
6. Com efeito, se a educação é uma atividade específica dos seres humanos, isto significa que o educador digno desse nome deverá ser um profundo conhecedor do homem.
7. Ora, a filosofia é a forma mais elaborada do grau mais elevado de compreensão do homem atingido pelo próprio homem. (Gramsci dizia que a filosofia é uma especialidade que interessa a todos os homens. Enquanto as especialidades, de modo geral, - veja-se o exemplo da entomologia – interessa a uma pequena parcela de homens, a filosofia trata daquilo que é a qualidade humana por excelência, isto é, o pensamento, razão pela qual ela interessa a todos os homens. Por isso ele entendia que “todos os homens são filósofos” porque todos pensam, elaboram os próprios pensamentos e expressam a compreensão que têm de si mesmos e das coisas. Esclarecia, entretanto que, se todos os homens são filósofos nem todos exercem, na sociedade, a função de filosofar. Daí, então, os especialistas em filosofia que, entretanto, se dedicam a uma especialidade que interessa não apenas a poucos homens mas a todos, à humanidade em seu conjunto.
8. Mas o conteúdo da filosofia é a história, isto é, a produção da própria existência humana no tempo.
9. Assim, poderíamos concluir que a filosofia e a história da educação constituem o núcleo duro da formação do educador.
10. Entretanto, se o conteúdo da filosofia é a história, o método de filosofar pode elidir a história ao fazer abstração de seu movimento concreto e convertê-la em idéias que se justificam por si mesmas, se movimentam de forma autônoma e, na sua formulação mais extrema, se convertem em geradoras do próprio mundo real. Este modo de filosofar é conhecido pelo nome de metafísica.
11. O antídoto ao modo metafísico de filosofar é a historicização, isto é, a concepção que toma a história não apenas como o conteúdo da filosofia mas também como o seu método, ou seja, que unifica na história o conteúdo e a forma da filosofia.
12. A partir dessas premissas nós podemos analisar a situação atual e a crise que a configura.
13. As idéias que hoje parecem ser hegemônicas se manifestam como expressão de crise na medida em que não se afirmam positivamente mas se afirmam como negação daquilo que é denominado como sendo a “metafísica do sujeito” característica da modernidade.
14. Daí, a crítica à razão, à consciência, às noções de verdade e de objetividade, a substituição da epistemologia pela lingüística e da lógica pela semântica, chegando-se à conclusão de que não faz sentido falar-se em conhecimento das coisas já que tudo se resume a “jogos de linguagem”.
15. Nesse contexto assaltam-me dúvidas hiperbólicas, como: a) o século XX parece um parêntesis histórico, uma espécie de sonho (para os socialistas) ou um pesadelo (para a burguesia) de que o capitalismo seria ultrapassado cedendo lugar a uma sociedade socialista. Acordamos no final desse século, os primeiros com a desilusão de que foi apenas um sonho e os segundos com o alívio de que tinha sido somente um pesadelo. E retomam-se as críticas à razão que haviam marcado as principais tendências filosóficas da passagem do século XIX para o século XX como se este último século não tivesse existido; b) afirmar que “tudo é linguagem” não é um enunciado metafísico? E, no entanto, isto é afirmado precisamente como forma de se contrapor exatamente à metafísica que teria caracterizado as concepções filosóficas anteriores, em especial aquela da modernidade que fora definida como “metafísica do sujeito”.
16. Retomemos a história para tentar dissipar essas falácias filosóficas:
17. A idéia de que a metafísica é algo que está além da física entendido este “além” como algo que a ultrapassa porque a precede e a fundamenta deriva de uma leitura de Aristóteles que não corresponde nem à forma como se desenvolveram os estudos desse filósofo nem ao modo como foram dispostos os seus escritos. Com efeito, os estudos sobre a física precederam os da metafísica cujo nome, por sua vez, deriva do fato de que, na organização da obra de Aristóteles foram chamados de metafísicos aqueles que foram postos depois dos escritos sobre a física. Por outro lado, sabemos também que foi a física aristetélica, de caráter ptolomaico, que esteve na base da sua metafísica. Tanto assim que, com a substituição da física ptolomaica pela física de Copérnico no final da Idade Média, a metafísica aristotélica veio a ruir, o que colocou a necessidade de uma nova metafísica, de base coperniciana, tarefa que se impôs Descartes tendo-a formulado no “Discurso do Método”, obra que inaugura a filosofia moderna, e dando-lhe uma forma acabada nas “Meditações sobre a filosofia primeira”.
18. A metafísica dos tempos antigos e medievais, isto é, a metafísica aristotélica, era uma metafísica do objeto (ou objetivista). Em contrapartida, a metafísica da modernidade era uma metafísica do sujeito (ou subjetivista).
19. Entretanto, não procede a afirmação de que a metafísica é um pensamento substantivador, isto é, atribui às suas idéias centrais o caráter de substância, ou seja, de uma coisa que se sustenta em si e por si, entendimento esse que tem levado a se considerar que a metafísica da modernidade, por ser uma metafísica do sujeito, consideraria o sujeito como uma substância, como algo que subsiste em si e por si.
20. Na verdade, a história da filosofia moderna pode ser lida como a história da erosão da noção de substância, isto é, como um processo que começou admitindo a idéia de substância mas progressivamente a eliminou.
21. Com efeito, se a referida afirmação é válida para Descartes para quem o sujeito era “res cogitans”, isto é, uma coisa pensante, e o objeto era uma “res extensa”, isto é, uma coisa material, ela é só parcialmente válida no caso de Berkeley, em cujo pensamento já não há lugar para as substâncias materiais restando apenas a substância espiritual e, finalmente, aquela afirmação já não tem nenhuma validade em relação a Kant para quem a própria noção de sujeito transcendental já não tem nenhum caráter substantivo reduzindo-se a uma mera função de conhecimento.
22. As idéias hoje hegemônicas, ao mesmo tempo que situam o marxismo como um pensamento próprio da modernidade, portanto, marcado pela metafísica do sujeito, o criticam por ter se limitado a análises totalizantes, objetivantes, sociologizantes, não deixando espaço para os indivíduos, os sujeitos e os aspectos psicológicos.
23. É preciso, pois, restabelecer o entendimento de que o pensamento de Marx é caracteristicamente antimetafísico manifestando-se provavelmente como a forma mais acabada de um modo de filosofar que unifica, na história, o conteúdo e a forma da filosofia. É, assim, uma filosofia ao mesmo tempo histórica e historicizadora em que estão em causa não os indivíduos ou sujeitos abstratos mas os indivíduos reais, sujeitos históricos que se constituem como síntese de relações sociais.
24 Por isso, em face do neopragmatismo que hoje busca reabilitar o pragmatismo alçando-o, pela via da filosofia analítica, à condição de pensamento hegemônico, conviria retomar as teses de Marx sobre Feuerbach: Poderíamos dizer que a tese 2, de Marx, sobre Feuerbach, tem pontos de contato com o pragmatismo quando afirma que “o problema da possibilidade de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é um problema teórico, mas sim um problema prático. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, ou seja, a realidade e o poder do seu pensamento. A controvérsia em torno da realidade ou irrealidade do pensamento – isolado da prática – é um problema puramente escolástico”. E isso é também reforçado pela tese 8: “Toda a vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que desembocam na teoria do misticismo encontram solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática”. Mas o limite do pragmatismo consiste em não tomar essa prática enquanto prática humana histórica, como está explicitado na tese 6: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração imanente ao indivíduo isolado. Na realidade, é o conjunto das relações sociais. Feuerbach, não entrando na crítica desta essência real, vê-se por isso obrigado: 1o-a prescindir do processo histórico, considerando o sentimento religioso em si e pressupondo um indivíduo humano abstrato, isolado. 2o.- a essência só pode conceber-se, por conseguinte, de um modo “genérico”, como uma generalidade interna, silenciosa, que una de um modo natural muitos indivíduos”. Assim, nós poderíamos aplicar o conteúdo da tese 8, Feuerbach não vê, portanto, que o ‘sentimento religioso’ é, por sua vez, um produto social, e que o indivíduo abstrato por ele analisado pertence a uma determinada forma de sociedade, ao neopragmatismo, traduzida ou, para ficar em seu universo vocabular, redescrita nos seguintes termos: “O neopragmatismo não vê, portanto, que o comportamento dos indivíduos, em geral, e o ‘comportamento lingüístico’, em particular, é, por sua vez, um produto social, e que o indivíduo falante abstrato por ele analisado pertence a uma determinada forma de sociedade”.
25 Assim é que, para compreender o modo de ser do homem e para fazer frente à crise atual, poderíamos dizer que a formação do educador deveria estar centrada no desenvolvimento de uma cultura filosófica a mais ampla possível, segundo um modo de filosofar que tenha a história como conteúdo e forma.
25 Entretanto, a política de formação de educadores que se está procurando implementar no Brasil caminha na contra-mão daquela exigência ao pretender formar não um professor culto mas um professor técnico, isto é, que seja capaz de entrar numa sala de aula e se desempenhar bem diante dos alunos em relação ao conteúdo de sua disciplina compendiado no manual didático, já simplificado, isto é, depurado dos elementos teóricos, de caráter histórico-filosófico, que os tornam compreensíveis. Para se formar um professor desse tipo basta ministrar-lhe o conteúdo dos próprios manuais didáticos aliado a algumas técnicas didáticas. E para isso não há necessidade dos cursos longos das universidades (que desperdício!) sendo suficientes os cursos curtos das escolas normais superiores dos institutos superiores de educação.
26 Mas a formação de um professor meramente técnico não é uma solução satisfatória em qualquer circunstância, à vista das exigências próprias da educação enquanto formação humana.
27 Todavia, tal solução poderia ser admissível numa situação social estabilizada e dotada de paradigmas compartilhados consensualmente.
28 Numa situação como aquela de hoje, reconhecida como em crise, aquela solução não pode ser tolerada.
29 Releva, assim, nessas circunstâncias, a importância da filosofia da educação e da história da educação na formação do educador.
 

Campinas, 27 de abril de 2001.