A EDUCAÇÃO MUSICAL NO CONTEXTO DA RELAÇÃO ENTRE CURRÍCULO E SOCIEDADE
Dermeval Saviani
1. Conceito de currículo
Currículo é entendido comumente como a relação
das disciplinas que compõem um curso ou a relação
dos assuntos que constituem uma disciplina, no que ele coincide com o termo
programa. Entretanto, no âmbito dos especialistas nessa matéria
tem prevalecido a tendência a se considerar o currículo como
sendo o conjunto das atividades (incluído o material físico
e humano a elas destinado) que se cumprem com vistas a determinado fim.
Este pode ser considerado o conceito ampliado de currículo, pois,
no que toca à escola, abrange todos os elementos a ela relacionados.
Poderíamos dizer que, assim como o método procura responder
à pergunta: como se deve fazer para atingir determinado objetivo,
o currículo procura responder à pergunta: o que se deve fazer
para atingir determinado objetivo. Diz respeito, pois, ao conteúdo
da educação e sua distribuição no tempo e espaço
que lhe são destinados.
2. O curricular e o extracurricular
Se o currículo diz respeito ao conteúdo da educação,
para se saber o sentido do currículo escolar importa tentar responder
à pergunta: qual é o conteúdo da educação
escolar? A esse respeito parece não haver muitas dúvidas.
O conteúdo fundamental da escola se liga à questão
do saber, do conhecimento. Mas não se trata de qualquer saber e
sim do saber elaborado, sistematizado. O conhecimento de senso comum se
desenvolve e é adquirido independentemente da escola. Para o acesso
ao saber sistematizado é que se torna necessária a escola.
Ora, que implicações tem isso para a questão do currículo?
Como já foi dito, prevalece entre os especialistas a idéia
de que currículo é o conjunto das atividades desenvolvidas
pela escola. Portanto, currículo é tudo o que a escola faz;
assim não faria sentido falar em atividades extracurriculares. Tal
conceito representa, sem dúvida, um avanço em relação
à noção corrente que identifica currículo com
programa ou elenco de disciplinas. Mas apresenta, também, alguns
problemas. Com efeito, se tudo o que acontece na escola é currículo,
se se apaga a diferença entre curricular e extracurricular, então
tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre-se o caminho para toda sorte
de inversões e confusões que terminam por descaracterizar
o trabalho escolar. Com isso, facilmente o secundário pode tomar
o lugar daquilo que é principal, deslocando-se, em conseqüência,
para o âmbito do acessório aquelas atividades que constituem
a razão de ser da escola. Não é demais lembrar que
esse fenômeno pode ser facilmente observado no dia-a-dia das escolas.
Dou apenas um exemplo: o ano letivo começa em fevereiro e logo temos
a semana do índio, a semana santa, a semana das mães, semana
do folclore, as festas juninas, em agosto vem a semana do soldado, depois
a semana da pátria, a semana da árvore, os jogos da primavera,
semana da criança, festa do professor, do funcionário público,
semana da asa, semana da República, festa da bandeira... e nesse
momento já chegamos ao final de novembro. O ano letivo se encerra
e estamos diante da seguinte constatação: fez-se de tudo
na escola; encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração,
mas muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação
de conhecimentos sistematizados. Mas, pode-se perguntar: qual é
o problema? Se tudo é currículo, se tudo o que a escola faz
é importante, se tudo concorre para o crescimento e aprendizagem
dos alunos, então tudo o que se fez é válido e a escola
não deixou de cumprir sua função educativa. No entanto,
o que se constata é que, de semana em semana, de comemoração
em comemoração a verdade é que a escola perdeu de
vista a sua atividade nuclear que é a de propiciar aos alunos a
aquisição dos instrumentos de acesso ao saber elaborado.
Para contornar esses problemas fui levado, então, a corrigir
aquela definição de currículo acrescentando-lhe o
adjetivo nucleares. Com essa retificação, a definição
passaria a ser a seguinte: currículo é o conjunto das atividades
nucleares desenvolvidas pela escola. Fica, assim, claro que as atividades
distintivas das semanas acima elencadas são secundárias e
não essenciais à escola. Enquanto tais, são extracurriculares
e só têm sentido na medida em que possam enriquecer as atividades
curriculares, isto é, aquelas próprias da escola, não
devendo, em hipótese alguma, prejudicá-las ou substituí-las.
Das considerações feitas resulta importante manter a diferença
entre atividades curriculares e extracurriculares, já que esta é
uma maneira de não perdermos de vista a distinção
entre o que é principal e o que é secundário. Um currículo
é, portanto, uma escola funcionando, isto é, uma escola desempenhando
a função que lhe é própria.
Vê-se, pois, que para existir a escola não basta
a existência do saber sistematizado. É necessário viabilizar
as condições de sua transmissão e assimilação.
Isto implica dosá-lo e seqüenciá-lo de modo que a criança
passe gradativamente do seu não-domínio ao seu domínio.
E o saber dosado e seqüenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação
no espaço escolar ao longo de um tempo determinado, é o que
convencionamos chamar de “saber escolar”.
Em suma, pela mediação da escola, dá-se
a passagem do saber espontâneo ao saber sistematizado, da cultura
popular à cultura erudita. Mas, se a escola se justifica em função
da necessidade de assimilação do conhecimento elaborado,
isto não significa que este seja mais importante ou hierarquicamente
superior. Trata-se, na verdade, de um movimento dialético, isto
é, a ação escolar permite que se acrescentem novas
determinações que enriquecem as anteriores e estas, de forma
alguma, são excluídas. Ao contrário, o saber espontâneo,
baseado na experiência de vida, a cultura popular, portanto, é
a base que torna possível a elaboração do saber e,
em conseqüência, a cultura erudita. Isso significa que o acesso
à cultura erudita possibilita a apropriação de novas
formas através das quais se pode expressar os próprios conteúdos
do saber popular. Mantém-se, portanto, a primazia da cultura popular
da qual deriva a cultura erudita que se manifesta como uma nova determinação
que a ela se acrescenta. Nessa condição, a restrição
do acesso à cultura erudita conferirá, àqueles que
dela se apropriam, uma situação de privilégio, uma
vez que o aspecto popular não lhes é estranho. A recíproca,
porém, não é verdadeira: os membros da população
marginalizados da cultura letrada tenderão a encará-la como
uma potência estranha que os desarma e domina. O papel da escola
democrática será, pois, o de viabilizar, a toda a população
o acesso à cultura letrada consoante o princípio que enunciei
em outro trabalho segundo o qual, para se libertar da dominação,
os dominados necessitam dominar aquilo que os dominantes dominam. Portanto,
de nada adiantaria democratizar a escola, isto é, expandí-la
de modo a torná-la acessível a toda a população
se, ao mesmo tempo, isso fosse feito esvaziando-se a escola de seu conteúdo
específico, isto é, a cultura letrada, o saber sistematizado.
Isto significaria, segundo o dito popular, “dar com uma mão e tirar
com a outra”. Com efeito, como já foi dito, para ter acesso ao saber
espontâneo, à cultura popular, o povo não precisa da
escola. Esta é importante para ele na medida em que lhe permite
o domínio do saber elaborado.
3. Currículo e Sociedade
Mas como se originou esse conteúdo fundamental da escola?
Como explicar a constituição dessa estreita relação
entre escola e saber sistematizado?
Para responder a essas questões é necessário
considerar a educação em sua estreita relação
com a sociedade no processo de desenvolvimento histórico. Com efeito,
a educação é inerente à sociedade, originando-se
do mesmo processo que deu origem ao homem. Desde que o homem é homem
ele vive em sociedade e se desenvolve pela mediação da educação.
A humanidade se constitui a partir do momento em que determinada espécie
natural de seres vivos se destaca da natureza e, em lugar de sobreviver
adaptando-se a ela, necessita, para continuar existindo, adaptar a natureza
a si. Dessa forma, o homem tem de se apropriar da natureza e transformá-la
de acordo com suas necessidades, sem o que ele perece. Diferentemente,
portanto, dos animais que têm a sua existência garantida pela
natureza bastando-lhes adaptar-se a ela, o homem necessita produzir sua
própria existência. Ora, a produção da existência
implica o desenvolvimento de formas e conteúdos cuja validade é
estabelecida pela experiência, o que configura um verdadeiro processo
de aprendizagem. Assim, enquanto os elementos não validados pela
experiência são afastados, aqueles cuja eficácia a
experiência corrobora necessitam ser preservados e transmitidos às
novas gerações no interesse da continuidade da espécie.
Nas comunidades primitivas a educação coincide
totalmente com o fenômeno acima descrito. Os homens se apropriam
coletivamente dos meios de produção da existência e
nesse processo se educam e educam as novas gerações. Nas
sociedades antigas e medievais, com a apropriação privada
da terra, então o principal meio de produção, surge
uma classe que vive do trabalho alheio e, em conseqüência, se
desenvolve um tipo de educação diferenciada destinada aos
grupos dominantes cuja função é preencher o tempo
livre de forma digna (“otium cum dignitate”). Aí está a origem
da palavra escola (do grego skolé = lazer, tempo livro, ócio
e, por extensão, ocupação dos homens que dispõem
de lazer; estudo) assim como de ginásio que, em grego significa
local dos exercícios físicos, local dos jogos. Essa educação
diferenciada, desenvolvida de forma sistemática através de
instituições específicas era, portanto, reservada
à minoria, à elite. A maioria, isto é, aqueles que,
através do trabalho garantiam a produção da existência
de si mesmos assim como de seus senhores, continuava a ser educada de maneira
assistemática através da experiência de vida cujo centro
era o trabalho. Nesse contexto, a forma escolar de educação
era uma forma secundária que se contrapunha como não-trabalho
à forma de educação dominante determinada pelo trabalho.
Na sociedade moderna ( ou capitalista, ou burguesa) a classe
dominante (burguesia) detém a propriedade privada dos meios de produção
(condições e instrumentos de trabalho convertidos em capital)
obtida pela expropriação dos produtores. Entretanto, diferentemente
dos senhores feudais (nobreza) a burguesia não pode ser considerada
uma classe ociosa. Ao contrário, é uma classe empreendedora,
compelida a revolucionar constantemente as relações de produção,
portanto, toda a sociedade. Oriunda das atividades mercantis que permitiram
um primeiro nível de acumulação de capital, a burguesia
tende a converter todos os produtos do trabalho em valor-de-troca, cuja
mais-valia é incorporada ao capital que se amplia insaciavelmente.
Nesse processo, o campo é subordinado à cidade e a agricultura
à indústria, que realiza a conversão da ciência,
potência espiritual, em potência material. O predomínio
da cidade e da indústria sobre o campo e a agricultura tende a se
generalizar e a esse processo corresponde a exigência de generalização
da escola. Assim, não é por acaso que a constituição
da sociedade burguesa trouxe consigo a bandeira da escolarização
universal e obrigatória. Com efeito, a vida urbana, cuja base é
a indústria, se rege por normas que ultrapassam o direito natural,
sendo codificadas no chamado direito positivo que, dado o seu caráter
convencional, formalizado, sistemático, se expressa em termos escritos.
Daí a incorporação, na vida da cidade, da expressão
escrita de tal modo que não se pode participar plenamente dela sem
o domínio dessa forma de linguagem. Por isso, para ser cidadão,
isto é, para participar ativamente da vida da cidade, do mesmo modo
que para ser trabalhador produtivo, é necessário o ingresso
na cultura letrada. E sendo a cultura letrada um processo formalizado,
sistemático, só pode ser atingida através de um processo
educativo também sistemático. E a escola é, por sua
vez, a instituição que propicia de forma sistemática
o acesso à cultura letrada reclamado pelos membros da sociedade
moderna.
Nesse contexto, a forma principal e dominante de educação
passa a ser a educação escolarizada. Frente a ela a educação
difusa e assistemática, embora não deixando de existir, perde
relevância e passa a ser aferida pela determinação
da forma escolarizada. A educação escolar representa, pois,
em relação à educação extra-escolar,
a forma mais desenvolvida, mais avançada. E como é a partir
do mais desenvolvido que se pode compreender o menos desenvolvido e não
o contrário, é a partir da escola que é possível
compreender a educação em geral e não o contrário.
De fato, isso fica evidente na própria maneira como nos expressamos.
Com efeito, a educação escolar é simplesmente entendida
como a educação. Já as outras modalidades são
sempre definidas pela via negativa. Referimo-nos a elas através
de denominações como educação não escolar,
não formal, informal, extra-escolar. Portanto, a referência
de análise, isto é, o parâmetro para se considerar
as outras modalidades de educação, é a própria
educação escolar.
Pode-se dizer, à guisa de síntese, que, ao deslocamento
do eixo do processo produtivo do campo para a cidade, da agricultura para
a indústria e ao deslocamento do eixo do processo cultural do saber
espontâneo, assistemático para o saber metódico, sistemático,
científico, correspondeu o deslocamento do eixo do processo educativo
de formas difusas, identificadas com o próprio processo de produção
da existência, para formas específicas e institucionalizadas,
identificadas com a escola. E as necessidades postas por essa nova forma
de organização da sociedade conduziram a uma nova forma de
estruturação do currículo escolar, isto é,
dos conteúdos do ensino.
Assim, são as necessidades sociais que irão determinar
o conteúdo, isto é, o currículo da educação
escolar em todos os seus níveis e modalidades. Portanto, também
a educação musical deverá ser entendida nesse quadro.
4. O ensino de música e a educação integral.
Se o sentido da educação se liga ao processo de
produção da existência pelos próprios homens
enquanto seres que necessitam aprender a se produzir a si mesmos, vê-se
que educação não é outra coisa senão
a promoção do homem. Mas o que significa, em termos educacionais,
promover o homem? Significa tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer
os elementos de sus situação para intervir nela transformando-a
no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação
e colaboração entre os homens. Ora, nessa colaboração
entre os homens atuando sobre a situação e se comunicando
entre si, descobre-se que o domínio do prático-utilitário
não satisfaz. Como dizia Ortega y Gasset, “o homem é aquele
animal para o qual o supérfluo é necessário”. Portanto,
a educação integral do homem, a qual deve cobrir todo o período
da educação básica que vai do nascimento, com as creches,
passa pela educação infantil, o ensino fundamental e se completa
com a conclusão do ensino médio por volta dos dezessete anos,
é uma educação de caráter desinteressado que,
além do conhecimento da natureza e da cultura envolve as formas
estéticas, a apreciação das coisas e das pessoas pelo
que elas são em si mesmas, sem outro objetivo senão o de
relacionar-se com elas. Abre-se aqui todo um campo para a educação
artística que, portanto, deve integrar o currículo das escolas.
E, nesse âmbito, sobreleva, em meu entender, a educação
musical. Com efeito, a música é um tipo de arte com imenso
potencial educativo já que, a par de manifestação
estética por excelência, explicitamente ela se vincula a conhecimentos
científicos ligados à física e à matemática
além de exigir habilidade motora e destreza manual que a colocam,
sem dúvida, como um dos recursos mais eficazes na direção
de uma educação voltada para o objetivo de se atingir o desenvolvimento
integral do ser humano.
5. A educação musical e a organização
curricular.
À vista do exposto, fica claro que, segundo o meu entendimento,
a educação musical deverá ter um lugar próprio
no currículo escolar. Além disso, porém, penso ser
necessário considerar uma outra alternativa organizacional que envolve
a escola como um todo e que, no texto preliminar que redigi para encaminhar
a discussão do projeto da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, traduzi através do enunciado do artigo 18 do anteprojeto,
nos seguintes termos: os poderes públicos providenciarão
para que as escolas progressivamente sejam convertidas em centros educacionais
dotados de toda a infra-estrutura física, técnica e de serviços
necessária ao desenvolvimento de todas as etapas da educação
básica.
Com esse dispositivo eu estava querendo contemplar todo um conjunto
de atividades que permitiriam incorporar aos currículos das escolas
experiências artísticas reais como aquelas que são
desenvolvidas regularmente em centros culturais mas, infelizmente, à
margem das escolas. Por esse mecanismo os alunos poderiam ter contato,
em seu processo formativo, com o desenvolvimento real das artes, no nosso
caso, da música, tendo acesso a programações musicais
regulares superando, com isso, o caráter de certo modo artificial,
infelizmente ainda muito freqüente na disciplina educação
musical tal como ministrada em grande parte das escolas públicas
do nosso país.