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Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis | Atualizado em 15/06/2021 - 13:34 FE Publica

Direito à Educação: um tema que não cabe só em Educação e Direito.

O maior problema em aceitar a não linearidade do pensamento e do conhecimento, é tentar encontrar formas de organizar o que parece caótico para se fazer entender, evitando, ao máximo, as possíveis perdas que essa tradução entre pensamento e linguagem pode causar[1].

Pois veja, o propósito inicial do texto era abordar direito à educação, e já se começou falando da dificuldade em organizar o processo comunicativo para então tratar do tema eleito.

Talvez possa dizer que, para além de uma introdução no esforço necessário à problematização de uma temática essencialmente plural – direito à educação –, a questão da compreensão que envolve linguagem e pensamento, abarque não só a forma de expô-la, mas também a sua essência conceitual, a começar pelo fato de que Direito é ciência e não opinião; assim como Educação é também ciência, e não vocação.

Interessante explorar como a área jurídica pode, simultaneamente, ser entendida como um cerco normativo ou um campo puramente discursivo, a depender da vontade do interlocutor[2]. Independente da corrente que se siga, Direito é ciência, e como tal também tem suas regras e princípios, longe de serem tanto justificativas do legalismo, quanto um bingo com um sem número de compreensões sobre um mesmo texto. Propositalmente não utilizei nem a palavra “interpretação”, nem “hermenêutica”, pois a segunda é ciência que encaminha, em algumas medidas, a primeira, e também tem as suas regras e princípios[3].

Hermenêutica pode ser metodologia, mas não ponto de vista. O que nos segura por um fio nesse governo de atrocidades é exatamente a exegese jurídica, ou, como gostam, o legalismo, pois que a dignidade humana está exegeticamente estabelecida no texto constitucional e em diversos textos infraconstitucionais[4]; os direitos fundamentais e sociais lá estão também positivados, mas mesmo com eles ali, somos reféns de um Supremo Tribunal Federal (STF) que lê, por diversas vezes, uma constituição desconhecida, cujo texto só enfraquece diante da ojeriza pela discussão jurídica qualificada que deve ser apropriada por todos.

No caso da Educação a ampliação dessas percepções é bastante aparente, como se a palavra "direito" fosse autorizadora de tudo, o que tergiversa a identificação daquilo que se tem, do que se pode ter e do que se deseja ter no campo normativo, o que consequentemente pode nos levar a uma batalha jurídica perdida, porque travada no campo errado[5]. Direito virou argumento de autoridade: eu tenho direito! Ótimo. Em detrimento de quê? Ou de quem? O cabo invisível de guerra entre interesses particulares e públicos existe quando não se compreende a complexidade de uma constituição com base em direitos fundamentais, pois que esses sempre devem ganhar e não se sobrepõem vez que são interdependentes e inter-relacionais[6].

Certamente que a batalha jurídica não é a única nem a mais importante para compor o bem-estar social, mas contribui para processos de cobrança, responsabilização e planejamento do Estado.

Trago aqui dois exemplos desse descuido, relativos ao direito à Educação, quais sejam: i) creche enquanto direito público subjetivo – entendimento majoritário da academia a despeito de não ser o recorte constitucional do artigo 208 e parágrafos[7] e ii) ensino religioso confessional – entendimento da corte suprema brasileira, o STF, por meio do julgamento da ADI 4439.

Antes de entrar especificamente nos casos, para buscar elucidar o que se mencionou sobre o poder ilimitado da palavra "direito", é importante destacar que a posição majoritária pode significar muitas coisas, desde consenso[8] até reprodução, e qualquer desses extremos têm seus pontos fracos. Se é consenso, pode impedir ou dificultar o refinamento da compreensão, pois pacificada; se é reprodução, abandonou o caráter crítico da produção de conhecimento[9].

Em qualquer dos casos, a violência simbólica[10] pode se fazer presente e colocar avanço (consenso) ou retrocesso/estagnação (reprodução) em xeque, o que, em termos lógicos acaba equiparando opostos, pois anula avanço e potencializa retrocesso[11]. Nesse sentido, mesmo que se tenha um resultado positivo na batalha jurídica – como foi o caso do reconhecimento da legalidade da União Homoafetiva (ADI 4427 e ADPF 132) – o processo foi negativo, vez que potencializou um papel que não é do Judiciário: o de legislar; e ignorou a obrigação do Legislativo (harmonizar o ordenamento jurídico, legislando).

Em tempos como esses em que vivemos, é temeroso – ou bolsonaroso? –, ainda termos uma constituição cujo texto escrito efetivamente diz da união entre homem e mulher (art. 226 CF/88), nitidamente reproduzindo o código canônico (Cânones 1055 a 1062), mas que, de bom grado, segue a suprema corte e lê "duas pessoas".

Parece que não tivemos a nossa parcela suficiente de Atos Institucionais. De maio de 2011 (data da decisão do STF sobre a União Homoafetiva) até a presente data (fevereiro de 2021), tivemos 40 emendas à Constituição.  Diante desse cenário, pergunta-se: não houve tempo ou não houve vontade política de modificar esse dispositivo? Estamos de fato protegidos com a decisão do STF? O que impede um presidente de querer efetivar texto constitucional em vigência em detrimento de entendimento dos guardiões da Carta Cidadã de Guimarães[12], os quais também decidem conforme a sua consciência?[13]

Assim como a constituição está para o código canônico, não estamos muito diferentes dos católicos do período das trevas que precisavam de intérpretes da bíblia, já que o STF tem sido nosso pároco. Queremos mesmo ser esse tipo de reféns? Quando a corte decide de acordo com o que pensamos, ovacionamos; mas quando decide contra o que pensamos, não gostamos; e em lugar de levar as discussões para onde a maioria delas deve ocorrer, que é no Poder Legislativo, ficamos como torcidas de futebol em dia de dérbi.

Em um país com muitas vontades, é melhor mesmo escrever a vontade da dignidade da pessoa humana, em lugar de pensar se é preferível uma ditadura do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário.

Não que eu esteja ignorando as dificuldades que um Processo Legislativo enfrenta em casas legislativas igualmente egocêntricas. Em nenhum momento é necessário optar por ignorar o judiciário, mas é preciso jogar com as regras do jogo, pois estas realmente nos favorecem. Em outras palavras, o pedido feito ao judiciário quando do tratamento da temática da União Homoafetiva no supremo deveria considerar mandar o legislativo corrigir o texto constitucional e não simplesmente acordar que o texto escrito é incompatível com o ordenamento[14]. Isso, da incompatibilidade, nós já sabíamos. Não precisávamos do STF. Afinal, reforça-se: direito não é opinião, é ciência, e como tal, tem suas regras e princípios, em especial, a separação dos poderes, mas harmônicos entre si[15].

Com esses parênteses já existem dicas dos percursos para abordar os dois exemplos que foram levantados anteriormente e aos quais dou prosseguimento.

No caso da creche, defendi e defendo[16], que não é parte do direito público subjetivo educacional, de encontro com o que os principais autores da área da educação defendem e com o que Ingo Sarlet propõe[17] como solução a uma constituição inflada de direitos: elevando-os todos a essa condição público subjetiva.

Mas o que defendo não é um discurso de negação, seja da vaga, da escola ou do processo educativo ao sujeito de direito mais importante de uma sociedade: a criança, mas uma indicação de que é preciso mudar o texto constitucional para poder cobrar e ter desdobramentos, os quais poderão ser vistos, por exemplo, no PNE – Lei n.º 13.005/2014[18], nos orçamentos públicos, nas atuações interinstitucionais (já que as demandas falam mais da necessidade dos pais terem um lugar para deixarem suas crianças do que do direito delas em ter acesso à educação[19]). O que a academia lê, não é o que se tem, e também por isso não atinge o que se quer. Nesse contexto, não seria apenas colocar a creche como direito público subjetivo, mas também articular com direito ao trabalho decente, por exemplo.

Parece relativamente fácil, pois que a vinculação dos direitos entre si, como disse anteriormente, é latente; no entanto, na administração pública, parece termos problemas ainda de ordem lógica básica. Quantas vezes já não presenciamos uma pavimentação novinha sendo destruída para resolver um problema de encanamento? A verdade é tão simples quanto dolorida: não sabemos – ou politicamente não queremos? Ou academicamente não conseguimos? – orquestrar ações de estrutura de via pública com diálogos entre dois órgãos, no caso de Campinas, SABESP e área de manutenção urbana da Prefeitura. Como queremos falar em interinstitucionalidade das políticas públicas, também optando por uma concertação teórica generalizadora?[20]

Já com relação ao ensino religioso confessional, podemos dizer que é caso paradoxal ao da União Homoafetiva. O procedimento foi o mesmo: a vontade dos ministros; mas o resultado não foi satisfatório. Aí se entende o que Elival da Silva Ramos quis dizer com "o ativismo judicial é ruim independentemente do resultado"[21], mesmo sem compartilhar de diversas posições do procurador.

No caso da AD 4439 não foram consideradas diversas questões do cotidiano escolar que não garantem a tal da presença facultativa; também ficaram de fora as discussões sobre a secularização da educação e o Estado laico[22]. Neste caso, o artigo deveria ser suprimido, ou substituído por uma determinação da obrigatoriedade de se discutir as diversidades, religiosas inclusive, como tema transversal; isso sim harmoniza com o ordenamento jurídico e com os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. No caso, ficamos como aquele meme: "Tava ruim, mas agora parece que piorou".

Se a constituição deve ser a vontade do povo, então as demandas jurídicas envolvendo o tema precisam ser entendidas como uma avaliação das políticas estatais a elas referentes, e direcionarem projetos de alteração na constituição e nas leis infraconstitucionais visando o amadurecimento da nossa Carta Cidadã. Motivo pelo qual o Judiciário não pode ser entendido como um ator nas fases de elaboração e implementação de políticas públicas, como propõe o pensamento majoritário[23], mas sim como um ator na fase de avaliação, sendo o termômetro das insatisfações sociais, vez que as cortes só são provocadas se há algum problema acontecendo – e também se a população sabe que pode provocá-lo, se a quantidade de processos por defensor público e/ou promotor permite a provocação em tempo hábil, entre outras questões conjunturais -[24].

Quando se trata de direito à Educação, não só o tema tem grande relevância, como o próprio processo de discussão, ampliação e efetivação deste direito possui um aspecto educativo para exercício da cidadania. E se começamos com problemas em linearizar o que não é linear, não haveria como terminar sem puxar mais uns fios nesse novelo. Mas educação como fonte e afirmação do direito e da cidadania, já é um tema para outro texto. Ou falamos disso também aqui?  É como no título... Direito à Educação é um tema que não cabe só em Educação e Direito.

 

Profa. Dra. Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis

 

 

[1] ASSIS, O.Q. et. al.. . Linguagem e Direito: Identificação, Interpretação, Aplicação. 1. ed. São Paulo: Editores, 2017.

[2] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; SERAFIM, A.P ; ASSIS, Olney Queiroz ; KÜMPEL, Vitor Frederico. . Noções Gerais de Direito e Formação Humanística. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 1. 581p .

[3] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; VEDOVATO, Luís Renato . Interpretação jurídica: considerações para análise de políticas públicas. DIREITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS, v. 2, p. 10-28, 2020.

[4] SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Curso de hermenêutica jurídica contemporânea: do positivismo clássico ao pós-positivismo jurídico. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2014. v. 1. 832p .

[5] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

[6] PERLINGEIRO, Ricardo. ¿La reserva de Lo posible se constituye en un Límite a La intervención jurisdiccional en Las políticas públicas sociales?. Estud. Socio-Juríd,  Bogotá ,  v. 16, n. 2, p. 181-212,  Dec.  2014 . 

[7] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Creche não é direito público subjetivo: uma questão de política pública ou de interpretação jurídica?. In: Maria Lilia Imbiriba Sousa Colares; Sinara Almeida da Costa. (Org.). A educação infantil no centro do debate: do direito adquirido às práticas cotidianas desenvolvidas nas creches e pré-escolas. 1ed.Curitiba: CRV, 2017, v. 1, p. 55-73.

[8] HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa: complemientos y estudios prévios. Madrid: Cátedra, 1997.

[9] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; VEDOVATO, Luís Renato . Interpretação jurídica: considerações para análise de políticas públicas. DIREITO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS, v. 2, p. 10-28, 2020.

[10] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand, 1998.

[11] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Migração: exceção que confirma a regra do contrato social?. In: André de Carvalho Ramos; Luís Renato Vedovato; Rosana Baeninger. (Org.). Nova Lei de Migração: Os Três Primeiros Anos. 1ed.Campinas: Núcleo de Estudos de População ?Elza Berquó? ? Nepo; Unicamp-Observatório das Migrações em São Paulo, 2020, v. 1, p. 547-564.

[12] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; FIGUEIREDO, E. H. L. . CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL: A BALZAQUIANA DE TRINTA. Direito, Estado e Sociedade, v. 1, p. 1-26, 2021.

[13] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

[14] Para saber mais sobre pedidos e sua importância no jogo jurídico das políticas públicas e sociais, ver: ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Contemplem! Eis o comunicador da norma.. Quaestio Iuris (Impresso), v. 10, p. 241-257, 2017.

[15] Não foi uma situação de consequência termos o controle de constitucionalidade estabelecendo, de fato, o que Locke e Montesquieu se esforçaram para determinar no Estado Moderno, foi uma opção do grupo presente no famoso caso Marbury X Madison nos E.U.A. século XIX. Valer-nos dessa compreensão é uma forma de impedir o mau uso dos órgãos públicos. Para mais informações ver SANTOS, M. C. ; OLIVEIRA, L. C. . O mito de Marbury v. Madison: a questão da fundação da supremacia judicial. REVISTA DE INVESTIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS, v. 5, p. 325-347, 2018.

[16] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Direito à Educação e diálogo entre poderes. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP), 2012.

[17] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. 

[18] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Creche não é direito público subjetivo: uma questão de política pública ou de interpretação jurídica?. In: Maria Lilia Imbiriba Sousa Colares; Sinara Almeida da Costa. (Org.). A educação infantil no centro do debate: do direito adquirido às práticas cotidianas desenvolvidas nas creches e pré-escolas. 1ed.Curitiba: CRV, 2017, v. 1, p. 55-73.

[19] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Direito à Educação e diálogo entre poderes. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP), 2012.

[20] LOTTA, Gabriela; FAVARETO, Arilson. Desafios da integração nos novos arranjos institucionais de políticas públicas no Brasil. Rev. Sociol. Polit.,  Curitiba ,  v. 24, n. 57, p. 49-65,  Mar.  2016 .  

[21] MILÍCIO, Gláucia. O ativismo judicial é ruim independente do resultado. Consultor Jurídico: São Paulo. 1 ago. 2009. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-ago-01/entrevista-elival-silva-ramos-proc…;.

[22] ASSIS, A.. Public and Private Education: The Construction of Concepts. In: Leal Filho W.; Azul A.; Brandli L.; Özuyar P.; Wall T.. (Org.). Encyclopedia of the UN Sustainable Development Goals. 1ed.Switzerland: Springer International Publishing, 2020, v. , p. 1-8.

[23] SABATIER, Paul A.; MAZMANIAN, Daniel A. La implementación de la política pública: un marco de análisis. In: VILLANUEVA, L. A. La implementación de las políticas. Ciudad Del Mexico: Editorial Porrúa, 1993. p. 323-372.; OLIVEIRA, Vanessa Elias. Judiciário e privatizações no Brasil: existe uma judicialização da política? Revista de Ciências Sociais: Rio de Janeiro, v. 48, n. 3, p.559-587, jul./set. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/dados/v48n3/a04v48n3.pdf&gt;

[24] ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Direito à Educação e diálogo entre poderes. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP), 2012.