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Edilene Alves da Silva | Atualizado em 14/10/2021 - 13:27 FE Publica

Múltiplas jornadas: diário de uma estudante mãe na pandemia

Tudo parecia bem. A Calourada Indígena tinha acontecido dias antes e havia também o ânimo dos estudantes não indígenas que comemoravam a entrada na universidade. Pelas escadas da Faculdade de Educação, mais movimentadas que de costume, sempre surgia alguém perdido procurando a sala tal. Pelas áreas abertas do campus, vira e mexe passava um grupo fazendo algum trote com seus calouros. Eu andava sem tirar o olho do celular, respondendo as tantas mensagens com dúvidas dos outros estudantes indígenas, que me tinham como a veterana que já descobriu os caminhos e os descaminhos da universidade. Em suma, mais um dia normal debaixo do sol. Pelo menos estava sendo até o horário do almoço. Naquele mesmo dia, 12 de março de 2020, a Unicamp anunciou a suspensão das atividades depois que o diretor geral da OMS declarou o agravamento da crise sanitária. Eu estava iniciando as atividades do quarto ano de curso.

As expressões sorridentes nos rostos foram bruscamente substituídas pelo pavor. Todo mundo tinha resolvido sair dos institutos e falavam sobre a mesma coisa, a Covid-19. No final do dia, como de costume, fui buscar as crianças na escola. Lá também ninguém sabia quais seriam os passos seguintes. Muitos dos responsáveis pelos alunos eram funcionários e estudantes da universidade, e com as atividades suspensas, como ficariam nossas crianças? O buchicho era grande, ninguém sabia a proporção que isso tomaria, até termos ciência da suspensão das aulas na rede estadual de São Paulo, que começou no dia 19 de março. No silêncio de meus pensamentos, apesar de ser o início de um novo semestre, eu desejava descansar daquela correria diária: corre atrás do ônibus das crianças, entrega as crianças, corre para o bandejão almoçar, corre para cá, para lá! Mas não podia imaginar ou desejar que fosse de forma tão violenta!

De início, os dias em casa me causaram a sensação de férias. As crianças foram para a casa da avó em Limeira, e eu viajei com meu namorado para o interior do Espírito Santo na casa de sua mãe. Tinha muitas coisas para fazer: entrevistas da minha IC para transcrever e revisar, textos de aula para ler. Mas a incerteza de como as coisas se organizariam me imobilizaram. Olhar a TV era assombroso. Todos os dias mais gente se contaminando e morrendo, e os números aumentando cada vez mais. Pensava nos meus pais, “será que estão bem?”. Nos noticiários a indecisão dos governantes sobre qual medida tomar, exigir o retorno em meio ao caos? E o ensino à distância? Só sabíamos da prorrogação da suspensão das atividades. As fakenews nas redes sociais, como Facebook, Instagram e Twitter só não superavam aquelas que chegavam nos grupos de WhatsApp, fomentando dúvidas, confusão e sentimentos ruins nas pessoas.

O ensino à distância assustava os estudantes tanto quanto o retorno às atividades presenciais. Mas algo precisava ser feito. A Unicamp decidiu não parar, se mobilizou para emprestar equipamentos que ajudassem os estudantes no “novo normal” que passou aos poucos a ser o Ensino Remoto, usando plataformas de encontros online como o Meet e o Zoom. À essa altura, eu e as crianças já estávamos de volta à  moradia dos estudantes. E para além das aulas, vi algumas medidas serem tomadas com os representantes discentes da moradia para não desamparar os estudantes bolsistas, tais como transporte para retirada de marmitas, doações de materiais de limpeza, máscaras. Na maioria das vezes, os voluntários que traziam doações de cestas básicas procuravam por mim, e depois de um certo tempo, como eu também era representante discente, montamos uma comissão com alunas voluntárias para fazer a distribuição dos alimentos que chegavam.

A escola das crianças também passou a organizar atividades remotas. As professoras enviavam diariamente atividades nos grupos de Whatsapp, que, além de sobrecarregar a memória do meu telefone, também sobrecarregavam a minha. A sensação de “férias” foi logo substituída pela de atropelo com tantas frentes para conciliar. Eu percebia no rosto das crianças uma certa chateação por tanto material que recebiam. E por mais que me esforçasse para auxiliá-los, resistiam. Pensava que seria o momento para colocar em prática o que aprendi no curso de Pedagogia. Na parede da sala, coloquei uma pequena lousa para que eu pudesse escrever algo para a minha filha copiar. Lembro-me que nessa primeira aula ela disse: “mãe, tem que ter intervalo, e não se esquece de pedir pra eu ficar em silêncio, porque o intervalo lá na escola é assim!” Chorei por dentro. E ela, usando de sua imaginação porque naquele momento eu tinha que ser a sua professora de “mentirinha”.

Achar espaço na agenda e dentro das paredes do estúdio para quatro pessoas estudarem (meus dois filhos, meu companheiro e eu) foi um malabarismo. A ansiedade já não me deixava mais dormir. Evitava falar com minhas amigas. Por sorte as terapias também voltaram. Sabia da minha necessidade em fazer, mas negava a mim mesma. Às vezes fingia que esquecia para não participar da sessão, outras que a internet estava lenta ou ainda que a luz tinha acabado. Criava desculpas para não ficar olhando para minha cara na tela de um aparelho.

Certa de que não podia mais fugir, comecei a abrir diálogos com meus filhos e com o meu companheiro. Compreendi que respirar o ar seco e cheio de fumaça não era uma opção, mas viver bem dentro de casa sim! Tentei olhar pelo lado positivo e construir junto com a minha família e amigos uma nova perspectiva. Afinal de contas, estávamos juntos. Estávamos na bolha de nossa casa na moradia, com um grande campo de futebol na frente. Tínhamos internet, e aparelhos para acompanhar as aulas, claro que não era tudo cem por cento, mas tinha tanta gente em situações bem piores! Para nós foi ruim, mas também foi tão positivo que a relação com meus filhos e meu companheiro ficou mais forte, sincera. Para as amigas passei a tentar passar uma mensagem positiva. Não dava mais para ficar reclamando. Afinal, a vida nunca tinha sido fácil e esse estava longe de ser o pior dos desafios que enfrentei.

Minhas aulas não tinham mais como cenário a sala de casa, e para não incomodar ou ser incomodada com o barulho alheio, comecei a assistir as aulas do lado de fora. Além de tomar um pouco de sol, aproveitava para molhar as hortaliças que plantamos para nosso consumo. Talvez o maior desafio tenha sido as aulas das crianças. Elas se acumularam, e eu não conseguia obrigá-los a fazer. Então conversei com uma amiga doutoranda em química, que topou ser a “professora” deles, acompanhando-os nas aulas virtuais, o que funcionou por um determinado tempo. Ah, esse grupo de mães da moradia, as amoras... Em outro post falarei dele. Achava bonita a empolgação da Anna quando ela tomava banho e se perfumava toda para ir estudar com a Vivi, “ela é brava, né, mãe? Disse que não gosta de criança fedida”. Ficava me perguntando, “por que funciona com a Vivi e não comigo? Por ela ser de fora? Como as crianças me enxergavam como mãe e professora delas?” Questões à parte, sentir que caminhávamos aos poucos era bom. Talvez foi daí que consegui participar de lives para falar da minha experiência como estudante indígena e mãe, de um evento na Faculdade de Educação onde minha orientadora e eu mostramos alguns resultados de nossas pesquisas e que posteriormente resultou na escrita e publicação de um artigo, entre outros acontecimentos que contribuíram com meu aprendizado.

O momento ainda era de distanciamento social, o mundo continuava um caos, mas eu me sentia melhor como pessoa, algumas vezes mais alegre, outras nem tanto. Mas consegui concluir dois semestres ainda com energia para decidir que no primeiro semestre de 2021 eu me graduaria em Pedagogia. Antes disso, recebi a bela notícia de que eu e outras estudantes do grupo de pesquisa iríamos acompanhar a aplicação da prova do vestibular indígena. Eu, que já tinha tomado duas doses de vacina, fui para Tabatinga, reencontrei alguns estudantes indígenas daqui que moram lá, conheci a cidade de Letícia na Colômbia, matei a saudade da comida da minha terra, revi alguns amigos e o mais importante, reencontrei a minha mãe e familiares na cidade que nasci, Novo Airão, depois de oito longos anos. Navegamos sobre o majestoso rio Negro, o mais lindo que preenche a minha vida de maravilhosas lembranças. Na oportunidade, minha mãe e eu ouvimos alguns relatos sobre o início do movimento indígena naquela cidade e a base da primeira comunidade indígena, em construção, guiada pelas mãos da cacica Alvanira. Foi pouco tempo, mas muito intenso. No retorno para casa, fui convidada para uma formação continuada de professores na escola em que eu fazia o estágio remoto em Educação Infantil, quanto aprendizado!

Finalizo esse relato com o sentimento de dever cumprido e com alegria no coração de ter encontrado pessoas maravilhosas no meu caminho durante a Graduação, antes e depois da pandemia. A pandemia, apesar dos pesares, também me trouxe aprendizado e me ensina todos os dias que não devemos deixar nada para depois, que devemos falar o que sentimos e como nos sentimos. Que devemos nos queixar do que está ruim. Sorrir de verdade. Não segurar o choro. Perdi conhecidos e um tio para a Covid-19, mas ganhei uma certa paz no coração, que pode parecer um pouco egoísta, mas que faz feliz as pessoas que estão próximas a mim e que com certeza, já é uma grande conquista. Esse pequeno relato se construiu na semana da minha colação de grau na Faculdade de Educação. Esta faculdade que me acolheu com o coração aberto, que me ensinou com esmero o poder da educação, me instigou a conhecer sobre mim mesma, que tem o mais lindo jardim de inverno com flores roxas (minha cor favorita), e que me deu uma nova família. A todas, todos e todes, o meu agradecimento.

 

 

 

 

Edilene Alves da Silva – Povo Munduruku – Licenciada em Pedagogia 1º semestre - 2021