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Marcia Strazzacappa | Atualizado em 15/06/2021 - 13:35 FE Publica

O riso é coisa séria. Com a palavra, Dona Clotilde!

Imagine uma mulher de origem humilde, com pouca escolaridade, nascida na roça e que migrou para a cidade grande à procura de melhores condições de vida. Tornou-se funcionária de limpeza, porém, com seu hábito de falar o que pensa, não consegue se fixar em nenhum emprego. Esse é o background de Dona Clotilde, a personagem clownesca que incorporo desde 2000. Denomino-a como personagem clownesca, não como clown ou palhaço[i], nem como personagem cômica (como as inúmeras personagens de Chico Anysio), pelo fato dela se encontrar num entrelugar. Dona Clotilde congrega numa só persona, características de uma profissão, de uma classe social e de um gênero. Quando Dona Clotilde está diante do público, seja ele universitário, hospitalar e/ou empresarial, ela reverte o status quo, apresentando-se como a iletrada que dirige a palavra aos detentores do saber (e do poder), constituindo-se per se numa crítica social.

Ao longo dos anos, em diversas ocasiões, ouvi vários questionamentos: Por que sua personagem é uma faxineira? Por que não uma professora? Uma estudante? Uma médica? Porque ao ser faxineira dei duplos poderes à Dona Clotilde: a invisibilidade (COSTA, 2004) e a onipresença, ambas características desses e dessas profissionais que circulam por todos os ambientes sem serem vistos, sem que ninguém lhes dirija a palavra para um simples “bom dia”. Ao estar em todos os ambientes sem serem vistos, profissionais de limpeza testemunham desde decisões tomadas em reuniões importantes a segredos confessados entre colegas no intervalo do café. De fato, é na vida ordinária que profissionais de humor buscam combustível para a graça. O e A humorista são grandes observadores/as do mundo. Da mesma forma, as gags de Dona Clotilde são inspiradas em fatos reais. Artistas cômicos/as devem estar atentos/as a tudo ao seu redor, vendo e ouvindo as pessoas, captando situações inusitadas, colecionando fatos, causos e histórias para depois transformar em gags e levar ao público. A tragédia do dia anterior é o humor do dia de hoje[ii].

Mas como ser uma artista cômica na atualidade? Em que a tragédia não aconteceu apenas ontem, mas tem sido cotidiana? Em que temos em nosso entorno próximo, pessoas que não tiveram a oportunidade de viver dignamente o luto de um parente? Como fazer humor no Brasil após 2018? Em um momento no qual a política parece piada e são os/as artistas que têm chamado as pessoas à razão? Em que políticos têm protagonizado pastelões e são os/as humoristas que têm colaborado para revelar suas incoerências, incongruências e incompetências[iii]?

Como apresentar Dona Clotilde, lembrando que seu lócus de atuação habitual é a área da saúde[iv], quando medidas sanitárias impedem a entrada de artistas em hospitais e faculdades de medicina? Como realizar as gags tradicionais de Dona Clotilde num cenário em que elas perderam sentido? Especificamente, no que tange ao trabalho cênico da atualidade, ou seja, via web, como apresentar uma personagem clownesca sem ter contato direto com o público? Sem ter o feedback imediato da plateia, ou seja, sem ver as expressões faciais nem ouvir os risos que regulam o timing entre uma gag e outra?

Diante deste quadro, Dona Clotilde ficou reclusa, vivendo profundamente seu isolamento social como milhões de pessoas ao redor do planeta. Porém, no início de 2021, Dona Clotilde começou a receber alguns convites inusitados por parte de diretores escolares, coordenadores de cursos e professoras da rede para realizar intervenções pontuais em reuniões de planejamento pedagógico. Os pedidos vinham acompanhados de sentimentos de impotência, desânimo e frustração de gestores diante do professorado que já havia enfrentado o desafio de, da noite para o dia, transformar suas casas em sala de aula, aprender a lidar com aplicativos e novas ferramentas para ensino remoto, acolher estudantes com câmeras fechadas, suportar a ausência daqueles e daquelas que não conseguiram acompanhar os encontros por falta de equipamento adequado ou internet, além de outros problemas detectados ao longo do ano letivo de 2020. Esse mesmo professorado havia criado a expectativa de que em 2021 a pandemia estaria controlada e que estariam todos e todas novamente em sala de aula, nas escolas, diante de estudantes presencialmente. Porém, não foi bem isso que aconteceu. Com a situação da pandemia se agravando no país, com tantas dúvidas pairando sobre retorno às atividades, com tanto temor de adoecer, como acolher professores e professoras? Como ter cabeça para entrar em reunião e pensar conjuntamente soluções e estratégias?

A resposta desses gestores foi abrir espaço para o riso, para a leveza e para a descontração. Assim, convidaram uma velha e conhecida personagem clownesca, Dona Clotilde, para reconectar professores e professoras com a humanidade que está dentro de cada pessoa, para dar um sopro de esperança e trazer um momento de otimismo.

Ao aceitar os convites, conversei com os gestores para identificar pistas para montar as gags. Há muitos anos, Dona Clotilde recebe encomendas e realiza em suas intervenções algumas “improvisações codificadas”[v]. Coloquei-me em ação, brincando com palavras e termos da atualidade como “ensino remoto”, “encontro síncrono e assíncrono”, “pandemia”, “grupo de risco”, “uso de máscara”, dentre outros. Neste processo, que há muito tempo não acontecia, lembrei-me de um princípio básico da comicidade que é a simplicidade e passei a buscar inspiração nas coisas banais do mundo, identificando aí uma proximidade com nossa condição de quarentena. Neste período, pudemos rever valores, redimensionar projetos e redescobrir o que nos é essencial: a vida.

Concluo com as sábias palavras de Dona Clotilde que, no alto de sua idade, já viu e viveu muita coisa:

“Minha gente, calma lá / Lembra bem que tudo na vida passa / Então a pandemia também passará!”

Marcia Strazzacappa

Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação (Laborarte) - FE - Unicamp

 

 

Referências

BURNIER, L. O. A arte de ator. Da técnica à representação. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

COSTA, F.B. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo editora, 2004.

FO, D. Manual mínimo do ator. São Paulo: Senac editora, 1999.

STRAZZACAPPA, M. Sobre danças, andanças e mudanças: trajetórias e memórias de uma artista-docente. Campinas: Librum, 2015.

THEBAS, C. O livro do palhaço. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2001.

 

[i] Para alguns autores (BURNIER, 2001; THEBAS, 2001, FO, 1999) há distinção entre clown e palhaço. Clown vem da palavra inglesa clod que quer dizer campesino, pessoa simples e ingênua. Já palhaço vem de paglia que em italiano quer dizer palha, material com o qual se recheava os colchões e as roupas dos primeiros palhaços.

[ii] Vide Programa Roda Viva de 21/06/1993 com Chico Anysio. https://www.youtube.com/watch?v=L42dwVjFn3U

[iii] Vide alguns episódios de Greg News, Porta dos Fundos e Vida de Professor de Diogo Almeida.

[iv] Dona Clotilde atua no ambiente hospitalar, porém seu trabalho não é voltado aos pacientes (como fazem muito bem os Doutores da Alegria, Hospitalhaços e MedMad, para citar apenas alguns) e sim aos trabalhadores e às trabalhadoras da saúde, como corpo médico, ambulatorial e assistencial.

[v] Sobre isso, vide o capítulo “Quando Dona Clotilde botou o nariz para fora” In: STRAZZACAPPA, Marcia. Sobre danças, andanças e mudanças: trajetórias e memórias de uma artista-docente. Campinas: Librum, 2015.