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Lilian Cristine Ribeiro Nascimento | Atualizado em 15/06/2021 - 13:33 FE Publica

Sobre sororidade, Fiona e Shrek

Nos anos 90, vivi experiências comuns a muitas mulheres na casa dos 30 anos: tive filhos, trabalhei e estudei. Na época, trabalhava como fonoaudióloga autônoma em consultório particular. Para conciliar trabalho e os estudos no mestrado e doutorado, contei com a ajuda de outras mulheres. Quero contar um pouco sobre uma delas.

Ana Maria veio trabalhar em minha casa quando meus filhos tinham 8 e 11 anos, e entre nós se estabeleceu uma atitude de solidariedade. Não vou dizer que éramos amigas, seria um eufemismo. Sou ciente da relação de trabalho, em que eu assumia a posição de empregadora e ela de empregada, bem explícita pelo capitalismo a que somos submetidos, mas realmente era uma relação de ajuda mútua. Ela trazia sua filha Luana todos os dias a minha casa. Luana brincava com meu filho mais novo, enquanto sua mãe cuidava da minha casa e eu trabalhava no consultório.

Quando eu ia para casa no intervalo de almoço, ajudava Luana no dever de casa (ela tinha muita dificuldade em matemática). Ela se sentava na mesa da cozinha, e, enquanto eu fazia o almoço, explicava-lhe as operações. Multiplicação para ela era um horror, nunca decorou a tabuada! Um dia, Ana Maria me revelou que tinha vontade de voltar a estudar; já havia procurado a escola do bairro, que oferecia educação para jovens e adultos (EJA) no período da tarde, com início às 13 horas. Estava apreensiva, pois precisava do trabalho e seu horário de sair era às 16 horas. Incentivei-a a voltar a estudar, garantindo que não haveria alteração de salário.

Ana passou a sair de casa um pouco antes das 13 horas, deixava Luana na escola e ia para a outra escola estudar. Algumas vezes, aparecia de volta em minha casa lá pelas 16 horas, a fim de concluir algum serviço que não conseguira terminar antes de sair para a aula. Embora eu insistisse que não precisava, ela dizia sentir-se melhor assim, pois no dia seguinte já haveria outras tarefas das quais se incumbir.

Era também para ela uma luta cuidar dos filhos, trabalhar e estudar.

Era uma relação de sororidade. Eu ainda não conhecia o conceito de sororidade, só viria a conhecê-lo muito tempo depois. O conceito tem sido utilizado para designar a união entre mulheres baseada no companheirismo e na empatia, na busca de finalidades comuns. Segundo Bacci (2030), sororidade

se traduz assim em “irmandade” entre as mulheres, no lugar da fraternidade (masculina), e dá origem a duas outras definições que ampliam aspectos de gênero, como “amizade ou afeto entre mulheres” e a “relação de solidariedade entre as mulheres, especialmente na luta pelo seu empoderamento” (BACCI, 2020, p. 6).

Certo dia, nas férias escolares, convidei Ana Maria e Luana para irem comigo ao cinema. Era a primeira vez que elas iam ao cinema. Impressionante como, no Brasil, o acesso a bens culturais é tão restrito a classes privilegiadas. Muito se caminhou na direção de acessibilidade à educação e à cultura nos governos democráticos de Lula e Dilma, mas o retrocesso no governo atual é gritante.

Elas ficaram tão encantadas ao assistir ao filme Shrek que, desde então, Fiona se tornou minha “princesa favorita”. Ana discutiu comigo que o final era totalmente inesperado, pois ela esperava que o ogro se transformasse em príncipe, e não o contrário. Realmente, aí está toda a graça do filme, pois não corresponde a padrões impostos de beleza e de romance, embora ainda tenha um final feliz: “Viveram felizes para sempre”.

Passaram-se os anos e, numa tarde, quando Ana já não trabalhava na minha casa, bateu à porta uma mulher. Pela janela, vi uma moça de calça jeans, maquiada e muito elegante. Fui atender e só então reconheci: era Ana Maria, muito diferente de como se vestia antes. Sua mudança era visível, não só externa, mas no modo de pensar e se expressar.

Peço licença ao leitor para fazer um parêntese neste trecho da história, uma pequena digressão. Recentemente, assisti à maravilhosa minissérie da Netflix denominada Nada ortodoxa[1]. É inspirada no livro: Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots, de Deborah Feldman e narra a história de uma jovem judia vivendo nos Estados Unidos e que, aos 19 anos, decide romper com os costumes de sua comunidade judaica ortodoxa e fugir para a Alemanha, em busca de uma nova vida. No novo país, ela passa a questionar a própria identidade e sexualidade. Uma das cenas marcantes é quando a protagonista (vivida pela atriz Shira Haas) vai a uma loja de departamentos e compra uma calça jeans, roupa tão comum para as jovens, mas que ela nunca havia usado.

Continuando minha narrativa sobre a nova Ana Maria, que custei a reconhecer com sua calça jeans, convidei-a para entrar e tomar um café. Ela me contou que havia se mudado para a Bahia a fim de cuidar de uma tia idosa, saíra de um casamento bastante conturbado e agora vivia sua liberdade, e que, conforme me contou, teria sido fortemente impulsionada pelo fato de ter concluído seus estudos na educação básica. Ela me contou sobre sua nova vida e de como estava feliz. Tinha um namorado muito diferente do ex-marido, com quem tinha uma relação tranquila.

Ela havia ultrapassado a Fiona, aprendera que não precisava se render a regras e padrões e mais, não precisara de um homem para salva-la da torre, fosse ele príncipe ou ogro, ela saíra por conta própria. Aprendeu que uma relação afetiva de homem e mulher deve ser baseada na confiança e na cumplicidade, e que a dominação e a violência nada têm a ver com amor. Foi preciso coragem, mas Ana Maria conquistou a liberdade. Isso ela me ensinou.

Aprendi com Ana, na experiência de vida, o que Paulo Freire já ensinara nos livros e na trajetória política:

A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é ideia que se faça mito. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos (FREIRE, 1987, p. 18).

 

REFERÊNCIAS:

BACCI, Claudia Andrea. Ahora que estamos juntas: memorias, políticas y emociones feministas. Rev. Estud. Fem., Florianópolis,  v. 28, n. 2, e72446, 2020.   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X202000…;. acessos em 09 mar.  2021.  Epub 07-Ago-2020.  https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n272446.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

 

 

Profa. Dra. Lilian Cristine Ribeiro Nascimento

Docente da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
Grupo de Pesquisa DIS (Diferenças e Subjetividades em Educação: estudos surdos e das questões de gênero, raça e infância)
Vice-chefe do Departamento de Psicologia Educacional
 
 
 
 
 
 

[1] Informações colhidas no site da UOL, no endereço:

https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/09/