DELIBERAÇÃO No: 276/2024
INTERESSADO: FACULDADE DE EDUCAÇÃO
ASSUNTO: Moção de Repúdio ao PL n° 672, de 2024
A CONGREGAÇÃO DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO em sua 386ª Reunião Ordinária, realizada em
25/09/2024, deliberou pela aprovação da Moção de Repúdio ao PL n° 672, de 2024.
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MOÇÃO NA ÍNTEGRA:
Na edição do Diário Oficial de 17/09/24, foi publicado um Projeto de Lei na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, sob o n. 672, de autoria do deputado Leonardo Siqueira (Partido NOVO), que, em seu Artigo 1o., “Autoriza a criação do Programa SIGA (Sistema de Investimento Gradual Acadêmico) no Estado de São Paulo, com a finalidade de introduzir mensalidades para os estudantes das instituições de ensino superior públicas do Estado, e garantir que restrições financeiras não impeçam a conclusão do ensino superior, através de apoio financeiro do governo estadual, e estabelece diretrizes para sua elaboração e execução pelo Poder Executivo.”
De início, destacamos aqui a intencionalidade inconstitucional do referido Projeto (portanto, em princípio, antidemocrática), muito semelhante ao teor da PEC nº 206/2019, de autoria do deputado estadual General Peternelli (na ocasião, filiado ao PSL-SP) e relatoria de Kim Kataguiri (União-SP), que argumentava pela cobrança de mensalidade no ensino superior público. A PEC nº 206 foi analisada também à época pelo professor e advogado Rodrigo Ribeiro de Sousa, em publicação do Jornal da UNICAMP, em 30 de maio de 2022, considerando a proposta de alteração dos artigos 206, inciso IV e 207, §3º, da Constituição Federal da República. Como argumentou Ribeiro de Sousa, naquele momento: “[…] a Constituição veda expressamente, no art. 60, §4ª, inciso IV, a apresentação de emendas que visem a eliminar os direitos e garantias individuais. O direito à educação, como direito social constitucionalmente garantido, constitui-se em um direito subjetivo ao ensino gratuito em estabelecimentos oficiais de ensino, não podendo, portanto, ser suprimido ou restringido por lei e tampouco por emenda à Constituição, sob pena de violação de norma constitucional que configura ‘cláusula pétrea’”.
Além da flagrante violação constitucional, no atual PL nº 672, argumenta-se que tal empreitada pretende se realizar “por meio de Empréstimos com Amortizações Contingentes à Renda (ECR)”, um fantasioso “Financiamento Inovador” que não resolve, em absoluto, o problema da diminuição de desigualdades no ensino superior, como analisam vários estudiosos/as da área, mais recentemente a partir do projeto-irmão Future-se. Quanto ao mérito, portanto, esse movimento pode revelar nova estratégia de lawfare – ou seja, erosão democrática através do tensionamento jurídico/legal, principalmente sobre direitos sociais já conquistados – como meio recorrente dos partidos que agregam as chamadas novas direitas (espectro político em que se encontram os partidos NOVO, PSL e União, envolvidos nessas empreitadas), de âmbito não apenas local; o que, aliás, tem configurado um campo de estudos bastante explorado por pesquisadores/as também dessas universidades, frequentemente ameaçadas em sua gratuidade e em outros âmbitos essenciais para sua existência, tais como a laicidade, a pluralidade de ideias e a manutenção e ampliação de oportunidades de acesso popular, ou seja, elementos que configuram essencialmente sua relevância social – em termos do ensino, pesquisa e extensão – e que acabam por confrontar os propósitos desses grupos políticos que agem de maneira sistemática e coordenada. Parece não ser casualidade ou exagero mencionar, portanto, que nesta mesma semana em que o PL foi publicado, também houve o lançamento do documentário “Unitopia: o que está acontecendo dentro dos muros das universidades será revelado”, pela produtora Brasil Paralelo, com intenções políticas afins bastante explicitadas e conhecidas. Importante mencionar, ainda, a articulação desses princípios à aplicação do programa neoliberal, estruturado na retirada de direitos por meio da desregulamentação, da privatização de serviços públicos e da centralidade da financeirização.
Nessa esteira, o PL argumenta que as instituições públicas paulistas ainda são elitizadas em termos de acesso e busca justificar sua propositura através de supostos êxitos internacionais e possibilidades de transformação no financiamento. Assim, o PL opta por ignorar os dados contrários a tais afirmações, como por exemplo, o fato de que, hoje, a maioria dos/as estudantes dessas universidades já é oriunda de escolas públicas, via de regra, ou seja, das camadas menos favorecidas economicamente. Neste contexto, como apontado em Moção anterior da Faculdade de Educação também contrária à PEC 206/2019, “É verdade que, por meio dos impostos, todos contribuem para o custeio das universidades públicas e que, apesar dos recentes avanços, muitos ainda não têm acesso a elas. Mas se se quer, de fato, corrigir essa distorção e ampliar os recursos destinados ao financiamento do ensino público, o caminho não é a cobrança de mensalidades que, além de excluir os jovens de famílias menos favorecidas, representaria uma dupla taxação. Mais coerente seria, como sugere o Prof. Renato Janine Ribeiro, Presidente da SBPC, cobrar mais impostos dos mais ricos e taxar as grandes fortunas e os dividendos de empresas, canalizando mais recursos para a educação”.
Apenas como exemplo mais recente sobre o tema, mais de 55% de estudantes que ingressaram na USP, em 2024, são egressos de escolas públicas. Com a mesma tendência de crescimento no acesso universitário desses grupos economicamente desfavorecidos estão outras instituições de ensino superior paulistas, tal como a UNICAMP, com pouco mais de 50% de matriculados/as com o mesmo perfil, e com um número de cotistas que aumentou 91% nos últimos cinco anos. Importante considerarmos, ainda, os programas de acesso a essas instituições por outras vias, como é o caso do Provão Paulista, recém-instituído, que recebe estudantes também de outros estados, democratizando cada vez mais o acesso às universidades públicas e gratuitas no país, a própria Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) e outras políticas de ação afirmativa. Em suma, quando o mencionado PL afirma: “aproximamo-nos das melhores práticas internacionais, ampliando o acesso ao ensino superior para a população mais pobre e fornecendo recursos adicionais às universidades públicas do estado de São Paulo”, não se refere à realidade dos fatos e, muito menos, à situação concreta de um dos países mais desiguais do mundo, em termos sociais e de renda, como é o Brasil, o que foi reiterado pelo Laboratório das Desigualdades Mundiais, no ano de 2021, dentre vários outros mapeamentos relacionados.
Em ambas as tentativas de revisionismo legal, há uma previsão de que os recursos obtidos com o pagamento de mensalidades sejam revertidos às instituições, o que, de fato, tensiona o financiamento público do ensino superior, uma vez que pode haver redução ou até mesmo desobrigação no investimento governamental às universidades. Um fragmento dessa compreensão pode ser encontrado na busca de justificativa do atual PL: “Isso [receitas que vieram do ICMS] evidencia a forte dependência das universidades paulistas em relação à arrecadação de impostos estaduais”.
Diante do exposto, a Congregação da Faculdade de Educação da UNICAMP manifesta com veemência seu repúdio à propositura do PL nº 672 de 2024 e quaisquer projetos semelhantes com fins privatistas e elitistas que ameaçam as condições necessárias para a efetivação da educação superior inclusiva, democrática, de qualidade e socialmente referenciada.
Campinas, 25 de setembro de 2024.
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REFERÊNCIAS:
- BBC NEWS BRASIL – 4 dados que mostram por que Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, segundo relatório: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59557761
- BRASIL PARALELO – UNITOPIA | EPISÓDIO 1: https://www.youtube.com/watch?v=_WoQrVOc2SU
- DOE SP – PL 672/2024: https://www.doe.sp.gov.br/legislativo/expediente/projeto-de-lei-n-672-de-2024-202409172116695592267
- FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNICAMP – Moção da Faculdade de Educação contra a PEC 206/19: https://www.fe.unicamp.br/noticias/mocao-da-faculdade-de-educacao-contra-a-pec-20619
- GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Metade dos matriculados na Unicamp em 2024 são oriundos do ensino médio público: https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/ultimas-noticias/metade-dos-matriculados-na-unicamp-em-2024-sao-oriundos-do-ensino-medio-publico/
- JORNAL DA UNICAMP – Número de cotistas aumenta 91% em cinco anos na Unicamp: https://unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2022/07/20/numero-de-cotistas-aumenta-91-em-cinco-anos-na-unicamp/
- JORNAL DA USP – Mais de 55% dos alunos que ingressaram na USP em 2024 são de escolas públicas: https://jornal.usp.br/institucional/mais-de-55-de-estudantes-de-escolas-publicas-ingressaram-na-usp-em-2024/
- PORTAL DA UNICAMP – Proposta de cobrança de mensalidade é inconstitucional: https://unicamp.br/unicamp/ju/artigos/proposta-de-cobranca-de-mensalidade-e-inconstitucional/
- PORTAL TERRA – Provão paulista: democratização do acesso ao ensino superior: https://www.terra.com.br/noticias/provao-paulista-democratizacao-do-acesso-ao-ensino-superior,2cbdb9e4392e9b5599b8f00b0ea99a1ck8jf9jw9.html
- XIMENES, S.; Cássio, F. (orgs). Future-se? Impasses e perigos à educação superior pública brasileira. Santo André, SP : Fórum Permanente de Políticas Educacionais da UFABC : Universidade Federal do ABC, 2019.