RECEITA PARA BEM ENSINAR FÍSICA*
Uma lata de cerveja (vazia), um relógio de pulso, um termômetro, uma bola de aço, uma pedra ou mesmo uma pena de galinha preta: qualquer um desses objetos, individualmente ou combinados entre si, basta para que alguém meça a energia irradiada pelo sol, conheça uma das leis formuladas por Galileu ou redescubra o fenômeno da decomposição da luz solar nas sete cores fundamentais, reproduzindo em nova versão uma clássica experiência de Newton.
Com esses simples, comuns e sobretudo “pobres” ingredientes, que podem ser encontrados facilmente, a preços baixos ou gratuitamente em qualquer região do país e do mundo, o físico Rodolpho Caniato, professor da Universidade Estadual de Campinas, elaborou e vem ensaiando desde 1970 uma das mais inovadoras e revolucionárias receitas de como ensinar Física para jovens, adultos e velhos que alimentam temor e aversão por essa ciência natural que os métodos tradicionais de Educação transformaram numa verdadeira máquina de tortura.
Na receita do educador da Unicamp, que ele denominou de “Projeto Brasileiro para o Ensino de Física”, todo o universo – a terra e o céu – pode ser resumido num balão de ensaio onde, a fim de simular a linha do horizonte, se coloca água azulada até a metade. Para estudar o movimento e o comportamento do firmamento sobre qualquer região do planeta, com os seus principais astros, é necessário apenas alterar a posição do balão sobre o seu tripé e ir fixando as estrelas nessa fictícia abóboda celeste.
Trata-se, evidentemente, de simulação. Na verdade, não é o céu que gira em torno da terra, mas esta que se movimenta no universo, juntamente com os demais corpos celestes. Como explica Caniato, “este é apenas um modelo, e um modelo não é sinônimo de miniatura, mas de teoria. Sua vantagem não é somente a de mostrar como se processam os fenômenos nas situações em que se considera a terra imóvel, mas também a de indicar as diferenças que existiram entre a Astronomia de antes e depois do advento da teoria heliocêntrica”.
Viver a Física
Coloque água numa lata de cerveja e exponha-a ao sol. Vá registrando a temperatura do líquido durante intervalos regulares de tempo, com um termômetro comum. Os intervalos e o período todo em que a lata ficou exposta podem ser medidos com o relógio de pulso. A cada vez que completar um dos períodos, consulte o termômetro e registre a temperatura e o horário. Depois, estabeleça a relação entre os graus centígrados e os minutos. Você acaba de medir a energia irradiada pelo sol. O primeiro volume do “Projeto Brasileiro para o Ensino de Física”, que o autor subordinou ao pequeno título “O Céu”, tem muitas outras experiências que procuram se basear na Astronomia para apresentar conclusões típicas da Física. “É que a Astronomia – diz o professor – engloba assuntos e problemas que se relacionam direta ou indiretamente com quase todos os campos do conhecimento científico ou não-científico, e como uma das primeiras ciências formuladas pelo homem, pode facilmente servir como motivação para as aulas de Física”.
Num de seus capítulos, o livro pergunta: “De que são feitas as Estrelas?” A questão é extremamente rica, pode gerar muitas outras perguntas. Entre as quais, está: “o que é luz?” E para respondê-la, o aluno não terá que mergulhar em nenhum compêndio acadêmico. Bastará olhar a chama de uma vela através de uma pluma negra (ou seja, uma pena de galinha preta) e observar a difração da luz (isto é, sua decomposição nas sete cores elementares).
Todos os experimentos propostos, descritos e explicados nos dois volumes elaborados pelo professor Caniato (o segundo tem o nome de “Mecânica”) são simples e, sobretudo, baratos. Ensinam, por exemplo, o estudante a utilizar-se de outras ciências (como a Astronomia e a Geometria) não como finalidades em si, mas como meios para chegar a outros conhecimentos na sua área de estudos.
As vantagens, as consequências e os estímulos são muitos. Mas a preocupação é uma só. “O importante – conta Caniato – é fazer com que o educando desenvolva o máximo de atividades possível, procurando sempre que puder utilizar diretamente as mãos; o importante é fazê-lo viver a Física”.
Três níveis
O método do professor Rodolpho Caniato pressupõe um programa de Ensino dividido em várias unidades de estudo, a ser desenvolvido através das aulas e dos experimentos. Essa estrutura, entretanto, não é fixa nem rígida, e a aprendizagem pode ser iniciada por qualquer uma das partes. “Não é necessário começar a ler o livro pela primeira página; se a pessoa tem pouco tempo, pode escolher os assuntos de maior interesse e possibilidade. Não existe uma ordem obrigatória e cada seção, com raras exceções, não é pré-requisito para a seguinte”.
O ensino se processa em três níveis, que o professor estabeleceu a fim de respeitar o fato de que “os alunos de uma mesma classe podem ser muito diferentes, tanto pelas suas aptidões como pelas suas aspirações, e por isso não podem ser forçados a se submeterem às mesmas quantidades e dificuldades de matéria”.
O nível número um, aplicado a todos os estudantes sem distinção, inclui um conjunto de informações e conhecimentos fundamentais da disciplina, acompanhados por um número mínimo de atividades experimentais, desenvolvidas em ambientes que não devem ser necessariamente laboratórios escolares, com material simples e convencional.
Os alunos que, por capacidade e interesse, conseguirem ultrapassar esse programa fundamental e querem saber “um pouco mais”, serão promovidos para o nível número dois, que envolve uma aprendizagem mais detalhada dos assuntos estudados. As experiências tornam-se um pouco mais complexas e o equipamento mais específico.
No nível número três passam a trabalhar os estudantes que “podem e querem saber um pouco mais ainda”. As unidades de estudo implicam então detalhes e pormenores maiores, a linguagem torna-se mais sofisticada, “ou seja, mais matemática”, e os cálculos se complexificam.
Esse sistema não traz como consequência nenhuma discriminação entre os educandos, explica Caniato. “É, ao contrário – diz ele –, apenas uma maneira de permitir que os estudantes mais adiantados possam especializar-se no seu campo científico preferido e obtenham dessa forma alimento mais sólido, aproveitando o tempo que perderiam se permanecessem só no nível número um”.
Papel do professor
O professor tem, no sistema do físico Rodolpho Caniato, o papel de um regente de orquestra. “Cabe a ele interagir intensamente com os educandos e usar sua maior experiência para conduzir e balancear a participação dos alunos, esforçando-se em evitar o esclerosamento e a fossilização dos conhecimentos e dos hábitos de ensino”.
Tanto educando como educador são participantes do jogo ensino-aprendizagem. Por isso mesmo, há regras e normas, que Caniato expõe no prefácio das suas obras não para dar rigidez ao método, mas para incentivar e permitir sua flexibilidade.
O que o professor renega e condena é “a concepção tradicional de educação, em que o aluno trabalha passivamente, apenas ouvindo ou copiando, enquanto o educador transmite a matéria numa linguagem rebuscada e, muitas vezes, até esotérica”.
“Nosso Ensino de Física – define ele – em geral é parecido a cursos de natação por correspondência, nos quais não adianta que o professor seja um campeão olímpico se o aluno não pode sequer entrar na água. Necessitamos de uma Física ativa, que envolva atividades, ideias, troca de argumentos (vale dizer, discussões) e sobretudo experiências diretas com os problemas estudados”.
A função do professor, diz Caniato, não deve ser a de simples fonte de conhecimento e a postura do aluno não pode se resumir em apenas receber. “Em geral, no sistema tradicional de Ensino, o recipiente (o estudante) realmente se enche – nos dois sentidos – mas raramente aprende”.
Uma Física para o Terceiro Mundo
O “Projeto Brasileiro para o Ensino de Física” já foi apresentado recentemente para os estudantes da Colômbia e da Guatemala. Em Bogotá, o físico da Unicamp representou o Brasil na I Reunião Latino-Americana sobre Didática de Física, da qual participaram delegados de todo o Continente. Em Honduras, o sistema foi exposto e explicado para um grupo de 40 professores universitários
que irão aplicá-lo na Universidade Nacional da Guatemala e nas escolas secundárias. Rodolpho Caniato explica que a receptividade nos outros países em relação ao novo sistema se deve principalmente a esses fatos: o método valoriza a capacidade imaginativa dos educandos e propõe a utilização de instrumentos extremamente simples, adequados às condições socioeconômicas das nações em desenvolvimento.
Além disso, o projeto é um forte estímulo – e uma das condições – para a independência tecnológica, na medida em que torna possível a formação de técnica e tecnologia mais compatíveis com as possibilidades e necessidades do país.
O sistema pode produzir técnicos mais criativos, realistas e, principalmente, mais conscientes das situações imperantes nas regiões subdesenvolvidas.
O projeto do físico da Unicamp pode, em última análise, ser resumido numa “Física pobre para países pobres”. A expressão “Física pobre” deve ser entendida, entretanto, apenas do ponto de vista material. Se há pobreza de equipamentos, é necessário supor, contudo, uma riqueza de imaginação e criatividade. E é criando soluções próprias para condições específicas que se poderá superar a pobreza, em todos os níveis e planos.
A morte do “monstro”
Orientado por esse ideal, o autor vai iniciar uma série de aplicações práticas de seu projeto, dando prosseguimento, numa nova fase, aos ensaios que começaram a ser desenvolvidos em 1970. Ainda neste mês, a Universidade de São Carlos passará a utilizar o sistema nos seus cursos básicos. E os alunos de Prática de Ensino de Física, da Unicamp, já estão aprendendo a empregá-lo.
Caniato recebeu ainda convites de duas cidades paulistas (Jundiaí e Presidente Prudente) para ministrar cursos sobre o assunto. Além disso, tem recebido o apoio de várias entidades científicas brasileiras, entre elas a Funbec, a Fapesp, o Departamento de Física da Universidade de Rio Claro e o Centro de Treinamento para Professores de Ciências do Estado.
Os dois volumes que compõem o trabalho, até agora, foram impressos pela Universidade Estadual de Campinas. Aos textos de estudo, o autor juntou várias fotografias estroboscópicas de experiências realizadas em laboratório com equipamento comum. Muitos desenhos, elaborados com a precisão dos próprios fenômenos físicos, estão presentes também para ilustrar a matéria.
O “Projeto Brasileiro para o Ensino de Física” é válido praticamente para todos os níveis de escolarização, mas especialmente o secundário e o básico universitário. Como o próprio autor o define, trata-se de uma “Introdução à Física”, mas que pode ser decisiva para os alunos na medida em que procura apagar a velha imagem do “monstro de sete cabeças” de uma ciência que não é, no fundo, senão o estudo dos fatos da natureza e suas inter-relações.
Confiram as fotos da publicação física no link abaixo:
* Texto escrito por Roberto Goto, publicado pelo Correio Popular, de Campinas, em sua edição dominical de 31 de agosto de 1975, na página 45, sem assinatura (era política do jornal, na época, não publicar matérias assinadas por seus repórteres, a não ser em circunstâncias excepcionais). A entrevista com o Prof. Rodolpho Caniato – um dos pioneiros da Faculdade de Educação, contratado em 1972 – foi sugerida ao repórter (então cursando o terceiro ano de Filosofia na PUC-Campinas) pelo Prof. Rubem Alves, cujo renome na cidade vinha sendo construído e disseminado por pessoas como o Prof. João Francisco Regis de Morais, que lecionava na PUCC e seria posteriormente orientando de doutorado e colega de Alves na FE da Unicamp.
Palavras-chave: Entrevista com docentes