Uma coisa boa de morar com o Miguel é que ele tem uma estante cheia de livros que eu ainda não li, mas muito mais do que isso, ele tem uma disponibilidade gentil de olhar para essa estante, com a mão no queixo, e sondá-la curioso tentando escolher o livro que ele acha que eu vou gostar de tomar emprestado.
Isso porque, um pouco antes, eu lia deitado na rede, e ele me perguntou se ainda lia. Era a biografia do Getúlio Vargas, ao que respondi que sim e aproveitei pra contar que o Getúlio tinha sofrido um acidente horrível na estrada de Petrópolis, que no meio da maior chuva, uma pedra rolou desfiladeiro abaixo e caiu sobre o automóvel. Contei pra ele que a cabeça de alguém tinha ficado exatamente no caminho da pedra e sido completamente esmagada, espalhando sangue e massa encefálica para todo lado, mas apesar disso, o chefe do governo provisório passava bem e ia ficar apenas alguns meses sem andar, despachando direto da cama.
Mas aí resolvi sair um pouco das biografias, das quais Miguel não é muito fã, e confessei a ele que tinha desistido de “A Redoma de Vidro”, porque estava achando muito deprimente e para aquela hora de sono, eu preferia temas muito mais leves. Essa conversa se desenrolava, já depois de onze horas da noite, mas como o Miguel é um desses rapazes jovens que facilmente se atraem pelos enigmas, ele olhou para mim assustado, depois olhou para o céu escuro da noite e disse que: “ela morreu de um jeito muito sombrio”. “Ela quem?”, eu perguntei, “a Sylvia Plath?”. Ele disse que sim, e como eu também não sou lá muito mais velho do que ele, não pude resistir e perguntei: “e como foi que ela morreu?”. “Ela liberou a válvula de gás do forno, enfiou a cabeça e ficou lá dentro até morrer.” “Eita, porra!”, foi minha honesta reação.
Eu estava impressionado, ainda não eram nem onze e meia e já havíamos passado por uma cabeça esmagada e uma cabeça asfixiada, ambas terrivelmente liquidadas, e aí eu me levantei pensando na minha própria cabeça e dizendo que provavelmente eu ia acabar sonhando com essas coisas todas. Então, ele foi acendendo um cigarro e me levando até a estante cheia de livros e perguntou de que tipo de narrativa eu gosto. Eu disse que não sabia exatamente como responder a pergunta, mas acrescentei que gosto de crime, e ele me respondeu não, não, isso seria o tema do livro, e o que eu quero saber é o tipo de narrativa que você gosta.
Eu pensei por um instante, lembrei de algumas coisas que um ex-namorado me explicou sobre o cinema, e respondo que eu gosto de narrativa clássica, com começo, meio e fim, e espero pra ver se essa afirmação faz sentido pra alguém como ele, alguém que é mestre em literatura, que faz doutorado em literatura, e pela expressão que ele tem no rosto, eu acho que sim, eu acho que o papo da narrativa clássica faz todo o sentido pra alguém como ele, porque ele começa a olhar pra estante ainda mais cabreiro, e me sentindo mais confiante, eu digo que se puder ter um clímax bem definido, é bom (assim, como se estivesse escolhendo um pastel na feira), e que se eu puder ficar curioso pelo que vai acontecer, é melhor ainda.
E o que acontece depois é impressionante.
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Palavras-chave: Literatura, Livros, Leitura, Cotiano
Sillas de Castro, servidor da Faculdade de Educação da UNICAMP