Uma pauta urgente no Brasil e no mundo
O assédio moral, o assédio sexual e as discriminações no trabalho deixaram há muito de serem episódios isolados para se consolidarem como fenômenos estruturais do mundo laboral contemporâneo. Em diferentes países, setores e formas de contratação, essas violências se manifestam como resultado direto da maneira como o trabalho vem sendo organizado, gerido e controlado, especialmente sob lógicas produtivistas, competitivas e profundamente desiguais.
No Brasil, esse cenário é agravado por fatores históricos e sociais que atravessam as relações de trabalho: heranças escravocratas, racismo estrutural, desigualdades de gênero, precarização das relações laborais e enfraquecimento das proteções sociais. O resultado é um ambiente em que o adoecimento psíquico, o medo, o silenciamento e a subnotificação tornam-se parte da rotina de milhões de trabalhadoras e trabalhadores.
O que dizem os dados: crescimento das denúncias e o iceberg da subnotificação
Dados recentes do Tribunal Superior do Trabalho e do Conselho Nacional de Justiça indicam que, entre 2022 e 2024, a Justiça do Trabalho recebeu mais de 458 mil ações envolvendo assédio moral e mais de 33 mil processos relacionados a assédio sexual. Apenas de 2023 para 2024, houve crescimento de cerca de 35% no volume de ações.
Esses números, embora expressivos, não revelam toda a dimensão do problema. Especialistas entrevistados para esta reportagem são unânimes em afirmar que o assédio no trabalho é fortemente marcado pela subnotificação em um modus operandi neoliberal. O medo de retaliações, a insegurança quanto à punição dos agressores, o receio de exposição da honra e da imagem e o próprio sofrimento psíquico das vítimas contribuem para que muitas situações jamais cheguem aos canais formais de denúncia.
Segundo a Procuradora do Trabalho Valdirene Silva de Assis, do Ministério Público do Trabalho (MPT), a subnotificação está diretamente relacionada à natureza dessas violências: “As vítimas são afetadas em sua honra, imagem e dignidade. Reviver as situações é doloroso. Quando, porém, sentem confiança de que haverá punição do infrator e proteção dos seus dados, elas se sentem mais seguras para denunciar”.


Assédio como expressão do adoecimento social
Para Assis, as violências, discriminações e assédios que ocorrem no trabalho não podem ser compreendidos de forma isolada. Elas são reflexo de um adoecimento social mais amplo: “São doentes os que praticam tais ilícitos e adoecem, sobremaneira, suas vítimas, quando não chegam a levá-las ao óbito”.
Essa leitura encontra respaldo nas pesquisas desenvolvidas há mais de 25 anos pelo Prof. Dr. Roberto Heloani, docente da Faculdade de Educação da Unicamp e uma das principais referências no estudo do assédio moral e sexual no Brasil. Ao longo de sua trajetória, Heloani coordenou investigações pioneiras que reuniram milhões de acessos e dezenas de milhares de relatos de trabalhadores, revelando desde situações de humilhação cotidiana até casos de ideação suicida.
“O principal fator desencadeante do assédio não é individual, mas organizacional”, afirma Heloani. Segundo ele, a forma como o trabalho é estruturado — metas abusivas, hipercompetição, individualização extrema, plataformização e precarização — cria ambientes tóxicos que favorecem práticas assediadoras, racistas e discriminatórias.
Quem sofre mais: gênero, raça e vulnerabilidades
As pesquisas coordenadas pelo pesquisador Heloani ao longo de mais de duas décadas evidenciam padrões persistentes: mulheres são mais assediadas do que homens; pessoas negras sofrem mais assédio do que pessoas brancas; mulheres negras, mais do que mulheres brancas; e pessoas LGBTQIAPN+ apresentam maior probabilidade de serem vítimas de assédio e discriminação.
Esses dados revelam que o assédio não é neutro. Ele se ancora em desigualdades estruturais e em relações de poder historicamente consolidadas, reproduzindo no ambiente de trabalho as violências que atravessam a sociedade brasileira.
Convenção 190 da OIT: um marco ainda pendente no Brasil
No plano internacional, um dos principais avanços no enfrentamento ao assédio no trabalho é a Convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada em 2019 e em vigor desde 2021. Trata-se do primeiro instrumento internacional a definir, de forma clara, violência e assédio no mundo do trabalho, reconhecendo-os como violações de direitos humanos.
Embora o Brasil seja signatário da OIT e tenha participado ativamente da elaboração da Convenção — com representação da procuradora Assis nas conferências internacionais em Genebra — o país ainda não ratificou formalmente o tratado. Para Valdirene, a ratificação é urgente: “É fundamental que o governo brasileiro ratifique a Convenção 190 e implemente um programa nacional de prevenção e combate às violências, discriminações e assédio no trabalho, com canais de denúncia específicos e atendimento humanizado às vítimas”.
Informação, prevenção e confiança: o papel das novas tecnologias
Diante desse cenário, iniciativas voltadas à conscientização, prevenção e facilitação do acesso à informação e aos canais de denúncia tornam-se estratégicas. É nesse contexto que surge o aplicativo “Trabalho sem Assédio!”, desenvolvido em parceria entre Unicamp, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ministério Público do Trabalho e Organização Internacional do Trabalho.
Segundo Assis, ferramentas desse tipo exercem função central no enfrentamento às violências laborais: “Um aplicativo que conscientiza sobre o que são violências, discriminações e assédio, que apresenta normas, publicações e encaminha para canais de denúncia exerce um papel fundamental na prevenção e no combate dessas mazelas”.
O aplicativo como ‘escudo’ para quem não tem voz
Para Heloani, o aplicativo é herdeiro direto de mais de duas décadas de pesquisa, também em conjunto com a saudosa Profa. Dra. Margarida Barreta, que juntos publicaram o livro Assédio Moral – Gestão por Humilhação, além de escuta e militância acadêmica. “O aplicativo acaba sendo um escudo para aqueles que não têm voz, para quem não sabe identificar se determinada situação é ou não assédio, discriminação ou violência”, afirma.
A proposta do app é educativa e preventiva: por meio de histórias interativas, o usuário pode reconhecer situações de violação no ambiente de trabalho; acessar conteúdos normativos, livros, cartilhas e pesquisas; e ser direcionado, de forma segura, a ouvidorias, defensorias públicas e procuradorias do trabalho.
Tecnologia, acessibilidade e sigilo
A viabilização tecnológica do aplicativo contou com atuação direta das equipes de Tecnologia da Informação e Comunicação da Unicamp em conjunto com a Faculdade de Educação da Unicamp. De acordo com o coordenador da TIC, Daniel Biscalchin, o trabalho envolveu a reescrita do código do servidor, a implantação na Nuvem da Unicamp e diversas melhorias estruturais.
“Houve grande preocupação em garantir compatibilidade com uma ampla variedade de dispositivos, inclusive versões mais antigas do Android, para ampliar o alcance. Também tivemos atenção especial à privacidade, assegurando que toda a coleta de dados seja feita de forma totalmente anônima”, explica Biscalchin.
Para além da denúncia: reconstruir o coletivo do trabalho
Tanto Heloani quanto representantes do MPT ressaltam que o combate ao assédio não pode se limitar à punição individual. É necessário reconstruir o coletivo do trabalho, fortalecer políticas institucionais de prevenção, investir em educação e informação e enfrentar modelos de gestão baseados na humilhação, no medo e na competição extrema.
“O combate ao assédio exige mudança cultural, organizacional e política”, resume Heloani. “A economia deve servir às pessoas, e não o contrário. Se o trabalho adoece, algo está profundamente errado”.
Vozes do lançamento: falas que ampliam o debate
Além das contribuições centrais do professor Roberto Heloani e da procuradora Valdirene Silva de Assis, o lançamento do aplicativo Trabalho sem Assédio! reuniu falas que reforçam o caráter interinstitucional, tecnológico e político da iniciativa.
O procurador-geral do Trabalho, Glaucio Araújo de Oliveira, destacou a importância de o Ministério Público não atuar de forma isolada: “Nós não fazemos nada sozinhos. A parceria com universidades como a Unicamp, com a OIT e com outras instituições é fundamental para que consigamos chegar à população mais vulnerável. Escutar a sociedade hoje é tão importante quanto falar”.
A coordenadora nacional da Coordenadoria de Promoção da Igualdade de Oportunidades do MPT, Daniele Olivares Correa, ressaltou que o combate ao assédio exige mudança cultural profunda: “O enfrentamento à violência e ao assédio no trabalho é um compromisso coletivo. Exige união entre poder público, universidades, órgãos de controle e sociedade civil para promover ambientes de trabalho seguros, dignos e acolhedores”.
Para o vice-procurador-chefe do MPT da 15ª Região, N. Messias Vieira, o aplicativo responde a uma urgência concreta: “Somente neste ano, a Procuradoria da Região autuou mais de 2.300 notícias de fato envolvendo assédio ou discriminação. Esse número revela a dimensão do problema e a necessidade de ferramentas que aproximem o Ministério Público da realidade vivida pelos trabalhadores”.
O diretor associado da Faculdade de Educação da Unicamp, Guilherme do Val Toledo Prado, enfatizou o papel da universidade pública: “Este aplicativo é fruto da colaboração institucional e reafirma o compromisso da universidade com a defesa radical dos direitos humanos no trabalho, sejam eles no setor público ou privado”.
Do ponto de vista tecnológico, o diretor executivo de TIC da Unicamp, Ricardo Dahab, destacou a responsabilidade institucional assumida pela universidade: “Colocar o aplicativo sob a guarda da Unicamp significa garantir sua manutenção, evolução e segurança, reforçando seu caráter público e seu compromisso com a cidadania”.


Lançamento do aplicativo “Trabalho sem Assédio!” marca avanço no combate às violências no trabalho
O primeiro aplicativo brasileiro voltado ao enfrentamento do assédio moral, sexual e das discriminações no trabalho foi lançado no dia 10 de dezembro de 2025, Dia Internacional dos Direitos Humanos, em evento realizado no Salão Nobre da FE-Unicamp, das 10h às 12h.
O encontro reuniu representantes do Ministério Público do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), além de pesquisadores, estudantes, docentes, sindicatos e organizações da sociedade civil.
O aplicativo “Trabalho sem Assédio!” é resultado de uma cooperação interinstitucional envolvendo o Núcleo de Estudos Trabalho, Saúde e Subjetividade (NETSS), o Observatório do Trabalho Docente, ambos vinculados à FE-Unicamp, e o Ministério Público do Trabalho, a UFSC e a OIT.
Coordenador do projeto e responsável pelo evento, o Prof. Dr. Roberto Heloani destacou que o aplicativo nasce como uma ferramenta pública, gratuita e acessível, voltada especialmente a trabalhadoras e trabalhadores em situação de vulnerabilidade. “Ele é um instrumento de informação, conscientização e proteção para quem muitas vezes não sabe a quem recorrer ou sequer consegue nomear a violência que sofre”, afirmou.
Durante o evento, também foi ressaltado o papel das equipes de TIC da Unicamp e da Faculdade de Educação da Unicamp na consolidação tecnológica do aplicativo. Segundo Daniel Biscalchin, coordenador da área, o projeto foi reestruturado para garantir estabilidade, acessibilidade e segurança dos dados, com implantação na infraestrutura institucional da universidade.
A procuradora do Trabalho Valdirene Silva de Assis, que acompanhou a elaboração da Convenção 190 da OIT em Genebra, ressaltou que o aplicativo contribui diretamente para a prevenção e o combate às violências laborais, ao oferecer informação qualificada, orientação e encaminhamento aos canais adequados de denúncia.
Com programação que incluiu mesa de abertura, apresentação do aplicativo e espaço para perguntas, o lançamento marcou um avanço significativo na articulação entre universidade, sistema de justiça e organismos internacionais em defesa da dignidade, da saúde e dos direitos humanos no trabalho.
O aplicativo “Trabalho sem Assédio!” já está disponível gratuitamente para download para celulares androids via Google Play Store e integra uma estratégia mais ampla de conscientização e enfrentamento às violências no mundo do trabalho. Uma nova versão está em estudo para versões IOS e plataforma de web.





