Conteúdo principal Menu principal Rodapé

Quando criança, lá na Juréia, Tapari apelidou sua irmã de Bilhá. Ninguém sabia o motivo daquele apelido, e nem mesmo Tapari lembrava de onde havia arranjado tal palavra. A história que é contada pela família diz respeito às reclamações que Tapari fazia em relação à irmã, quando ela saía para passear com as primas e não o levava junto. Nesse caso, contrariado, Tapari soltava a seguinte frase: “Deixe estar, Bilhá. Vou comprar um caminhão pra mim e não dou Bilhá.” Daí para a frente, o apelido de Bilhá consolidou-se na família e também na comunidade caiçara da Juréia.

Bilhá foi uma menina séria na adolescência, focada nos estudos e inconformada com a humilde situação econômica de seus pais. Sua face expressava poucos sorrisos e, em seu interior, sobrava a vontade de prosperar, ter uma vida boa e mesa farta. Sonhava poder ir à Festa de Agosto e conseguir comprar doces, brinquedos e roupas nas barracas espalhadas pelas ruas da cidade. Almejava, um dia, ter um estilo de vida parecido com o do tio Renato, seu professor, que possuía uma casa de fazer farinha de mandioca, uma roça de arroz, feijão e, também, um galinheiro com várias poedeiras. A vontade de ter sua própria roça de mandioca era tamanha que, um dia, decidiu convidar seu irmão Tapari para realizar o sonho de ter uma roça na tiguera.

No embalo do trabalho braçal, Bilhá adquiriu um calo que a fez abandonar o sonho da roça. A infecção propagou-se do dedo para a totalidade da mão, fazendo com que Bilhá vivesse dias infelizes nos hospitais. Primeiro, passou pelo atendimento médico na cidade de Iguape, e de lá seguiu para o Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde sua irmã a acompanhou com muita dedicação e carinho. Bilhá viveu meses internada, tratando-se para não ter sua mão amputada. Quando deixou o hospital, decidiu morar na capital paulista junto aos seus irmãos. Distante da Juréia, continuou os estudos e passou a trabalhar no chão de fábrica, de onde sempre sonhou com sua roça na tiguera da Juréia, para onde nunca mais voltou a morar.

Tapari terminou a roça com a ajuda de seus pais e fez várias farinhadas para honrar a irmã, além de comer farinha com açúcar no quarto dela, onde lia a frase que ficou escrita na parede: “Quem o feio ama, bonito lhe parece”. Além da frase, Tapari também sentia saudades da irmã quando ouvia a música do cantor Amado Batista, intitulada “Amor Perfeito”, que falava do quarto de cirurgia. Mais tarde, sua mãe, Princesa Guarani, converteu-se ao protestantismo e, nas leituras diárias da Bíblia, encontrou a palavra “bilhá”. Maravilhada pela descoberta, pediu para que Tapari pesquisasse a origem da palavra. Atendendo ao pedido de sua mãe, Tapari descobriu que a palavra tem origem hebraica e que foi introduzida no Brasil, certamente pelos portugueses, e que, ao confluir com a cultura indígena, criou-se a ideia do pote de barro que até hoje os caiçaras usam em suas cozinhas com fogão à lenha. Nas reflexões de Tapari sobre o surgimento da palavra “Bilhá”, ele considera a hipótese de que o afloramento espontâneo de palavras e conceitos estejam relacionados à ancestralidade caiçara, fruto da confluência entre povos indígenas, europeus e africanos.

Bilhá, que é a Márcia Agostinha Franco, constituiu família em São Paulo ao longo de cinquenta anos e, atualmente, aguarda sua aposentadoria para retornar à sua terra natal e, assim, realizar o sonho de ter uma roça de mandioca para fazer farinha artesanal bem torradinha e comer os deliciosos bijus de goma nas tardes de café caiçara.

……………………………….

Paulo Cesar Franco é caiçara, professor de filosofia e educador popular.
E-mail: pcfranco15@gmail.com

Palavras-chave: Cotidiano, família, vida

Ir para o topo