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Escolas Cívico-Militares em São Paulo: Uma Política para Quem?

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O governo de São Paulo insiste em apresentar o Programa de Escolas Cívico-Militares como uma política inovadora capaz de resolver os problemas da educação pública. No entanto, uma análise mais atenta revela um projeto que não apenas falha em cumprir suas promessas, mas também reforça mecanismos perversos de exclusão social. A começar pelo anúncio das escolas “beneficiadas” com o programa, que desmascaram o discurso oficial. Se a proposta fosse realmente melhorar o ensino em áreas vulneráveis, é, no mínimo, contraditório que a maioria das instituições escolhidas já possui bons indicadores educacionais e atende majoritariamente alunos de classe média. Essa contradição não é mero acaso, mas a expressão de uma lógica histórica bem documentada por pesquisadores como Décio Saes: a apropriação da escola pública pelas classes médias, que a defendem no plano retórico, mas buscam na prática meios de fortalecer processos de distinção social entre seus filhos e os estudantes pobres.
A relação ambivalente da classe média com a escola pública ajuda a entender o verdadeiro propósito por trás da militarização. Décio Saes demonstra como esse grupo social utiliza a educação como instrumento de distinção, valorizando-a enquanto espaço formalmente democrático, mas rejeitando-a quando ela se democratiza de fato. O modelo cívico-militar, com sua ênfase em disciplina rígida e hierarquia, atende perfeitamente a esse desejo de diferenciação. Não se trata de melhorar a qualidade do ensino para todos, mas de criar ilhas de excelência dentro da rede pública, reservadas aos que já possuem vantagens sociais. Enquanto isso, as escolas das periferias continuam abandonadas à própria sorte, sem os investimentos necessários em infraestrutura, formação docente e projetos pedagógicos inovadores.
Mesmo que o Programa de Escolas Cívico-Militares fosse direcionado às escolas mais vulneráveis – o que claramente não é o caso – ainda assim seria profundamente problemático. A militarização da educação em territórios pobres representa uma forma perversa de criminalização da juventude periférica. Em vez de enfrentar as causas estruturais do fracasso escolar, como a precariedade das condições de ensino, a desvalorização do trabalho docentes e a desigualdade social, o Estado opta por tratar a pobreza como caso de polícia. A mensagem é clara: os problemas das escolas nas periferias não decorrem da falta de investimentos, mas da suposta indisciplina de seus alunos, que precisariam ser controlados pela força. Essa lógica já foi amplamente denunciada por educadoras(es) e pesquisadoras(es), que apontam como o modelo militarizado tende a aumentar a evasão escolar, especialmente entre estudantes negros e pobres, os mais visados pelos mecanismos de repressão do Estado.
A insistência no mito da eficiência militar revela ainda mais o caráter ideológico do projeto. Não existem evidências consistentes de que a gestão por militares melhore efetivamente a aprendizagem. O que se vê, na prática, é o sufocamento de um projeto de educação emancipadora e a imposição de um regime autoritário, onde a aparência de ordem se sobrepõe à formação crítica. Enquanto isso, questões fundamentais seguem sem solução: salários dignos para profissionais da educação, bibliotecas equipadas, laboratórios em funcionamento, currículos que dialoguem com a realidade dos estudantes. Essas seriam algumas das medidas para melhorar a educação pública, mas elas exigem investimentos massivos e vontade política – algo que se contrapõe ao projeto político da extrema-direita, representada no Estado de São Paulo, pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
O que está em jogo, portanto, vai muito além de um simples modelo de gestão escolar. A militarização da educação pública representa a consolidação de um projeto de sociedade onde os privilégios de alguns se mantém às custas da exclusão de muitos. Enquanto a classe média consegue garantir para seus filhos escolas públicas “diferenciadas”, a maioria pobre é submetida ou ao abandono estatal ou a um regime disciplinar que a trata como ameaça potencial. Romper com essa lógica exige mais do que criticar o programa cívico-militar; é preciso defender uma educação verdadeiramente democrática, que reconheça as desigualdades sociais não como justificativa para repressão, mas como desafio a ser superado por meio de políticas públicas pensadas coletiva e democraticamente. Afinal, numa sociedade profundamente desigual como a nossa, a escola pública deveria ser, potencialmente, instrumento de transformação social, e não de reprodução das hierarquias existentes.
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Referências:
CNN Brasil: Lista das escolas cívico-militares em SP
SAES, Décio. Escola pública e classes sociais no Brasil atual. Linhas Crí­ticas, [S. l.], v. 14, n. 27, p. 165–176, 2009.
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Ricardo Normanha, Pesquisador de Pós-Doutorado e professor credenciado na graduação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Diferenciação Sociocultural (GEPEDISC)

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