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Escutar é pesquisar: Quando a infância guia o caminho

“Professora, a formiga gosta de folha seca ou de folha verde?”

Essa pergunta, simples e cheia de vida, ecoa na minha memória. Ela é como tantas outras que escuto todos os dias na escola pública onde trabalho com crianças da Educação Infantil — perguntas que me atravessam, me desorganizam e, principalmente, me convidam a pesquisar com as crianças, e não sobre elas.

Nos últimos anos, acompanhei processos intensos com os pequenos: uma turma que quis entender como os livros nascem, outra que se encantou com a vida das lagartas, e até uma que defendeu o lobo das histórias, querendo recontar o mundo com outros olhos. Essas pesquisas nasceram do cotidiano mais simples: da visita inesperada de uma formiga no parque, de uma roda de conversa sobre os cabelos, de um desenho espontâneo, de uma dúvida na hora do lanche. Elas não cabem em uma grade curricular rígida, mas transbordam em presença, vínculo e pensamento.

Essas experiências me ensinaram algo fundamental: a infância tem um tempo próprio. Meu papel como professora não é atropelar esse tempo com respostas prontas, mas sim sustentar a pergunta. É me deixar ser afetada pela escuta — compreendida como uma abertura para o inesperado e uma ética da presença.

Aprendi a escrever diários de campo sem nunca esquecer o olhar da criança. A fotografar não para ilustrar um plano de aula, mas para registrar um gesto, um detalhe. A documentar os silêncios, os desvios, aqueles momentos que dizem mais que mil palavras. E, acima de tudo, aprendi a estar presente. Porque escutar de verdade exige uma presença inteira.

Nesse contexto, a pesquisa não é um projeto pronto que aplico. É um acontecimento que nos encontra. É no encontro entre vozes — na dialogia — que o sentido se forma. Não nasce da urgência por resultados, mas da delicadeza de estar com. Foi assim que surgiram livros artesanais, formigueiros de papel machê, maquetes do Cerrado e mosaicos com materiais naturais. Tudo isso construído com as crianças, e não apenas para elas.

Hoje, sigo escrevendo a muitas mãos. Escrevo com os olhos curiosos de Miguel diante do formigueiro, com a voz vibrante de Júlia lendo seu livro, com o silêncio expressivo de Rebeca me olhando antes de fazer uma nova pergunta. Escrevo a partir do que escuto — e é isso que me forma, dia após dia, como professora e pesquisadora.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


Kacia Alves Rodrigues, é mestranda na Faculdade de Educação da Unicamp e professora na rede municipal de Educação Infantil de Campinas (SP). Acredita que escutar as crianças é abrir caminho para pesquisas vivas, onde imaginação, afeto e conhecimento se entrelaçam no cotidiano da escola pública.


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