Era sábado de manhã, e o céu estava cinzento. Acho que eu já sentia que seria um dia ruim. Faz semanas que eu e meus amigos tínhamos combinado de ir ao cinema, e eu estava tão animado! Mas, naquela manhã, meu pai me deu uma triste notícia: ele não poderia me levar. O carro, aquele Gol quadrado e velhinho de meu pai, tinha quebrado.
Fui correndo procurar os horários de ônibus, com a esperança de achar uma solução. Mas não tinha nenhum ônibus direto para lá, onde ficava o cinema. Minha mãe disse que era um sonho distante ter um ônibus que fosse direto pra lá. O cinema é pertinho da casa da Aninha, filha do Doutor Aurélio, um advogado importante. Minha mãe explicou que gente como o pai da Aninha não queria que tivesse ônibus direto daqui para lá, porque as nossas roupas não eram chiques, eram roupas usadas do primo Eli e da Tia Quitéria.
Eu não entendi. Perguntei pra mamãe o porquê da gente não poder comprar roupas novas. Quem sabe assim o Senhor Aurélio e seus vizinhos deixassem ter um ônibus novo pra gente. Mas mamãe só balançou a cabeça e disse uma coisa que eu não esqueço: “Meu filho, pobre não troca de roupa, é a roupa que troca de pobre.”
Fui falar com papai e perguntei se eu podia pegar dois ônibus: um para o centro e outro para lá, igual a Tia Quitéria que ia trabalhar na casa do senhor Aurélio. Mas meu papai disse que era muito caro, mais caro que o próprio cinema! E que não tinha ônibus para agora, só existiam 4 ônibus, os das 6h, 8h, 16h e das 18h, e eram paras pessoas como Tia Quitéria e as amigas dela, que trabalhavam para o pessoal de lá.
Então, não teve jeito: não fui ao cinema. Mais tarde, naquele mesmo sábado triste, o prefeito inaugurou uma pista de boliche e anunciou que um museu novinho ia abrir lá no bairro da Aninha. Fiquei tão chateado! Parece que tudo de legal só acontecia lá e eu não conseguia chegar. E o carro do papai? Não tinha mais conserto.
Na segunda-feira, na escola, chegou um aluno novo de outra cidade. Ele parecia conhecer tudo! Sentou do meu lado e perguntou meu nome. Depois, quis saber se eu conhecia uns lugares que ele visitou com o pai dele antes de se mudar. Eu respondi que só conhecia meu bairro, um pedacinho do centro onde meu pai trabalhava, e a frente do bairro da Aninha, por causa da escola. Quando eu disse onde morava, ele fez uma cara de quem não conhecia, e eu achei estranho, porque meu bairro é vizinho da escola!
O aluno novo perguntou para a professora sobre meu bairro. Ela respondeu que era um bairro perigoso e disse para ele não ir lá.
Depois da aula, meus amigos fizeram planos de ir na casa do aluno novo, que mora do outro lado do bairro, lá perto da Aninha. E mais uma vez, eu não fui.
Eu queria tanto conhecer mais a cidade, andar por ela! Mas era sempre muito caro! Queria ir nos lugares novos que inauguraram, mas parece que a cidade não me queria. Ela não me deixava andar por aí.
À noite, quando fui dormir, lembrei da notícia que o prefeito deu no sábado: ele disse que o boliche e o museu pertenciam aos moradores da cidade.
Acho que, então, eu não sou um morador da cidade de verdade. Acho que eu moro no estrangeiro.
Maike Martins é estudante do curso de licenciatura em geografia e atualmente (2º semestre de 2025) cursa a disciplina de EP132 – Educação, Democracia, Cidadania e Direitos Humanos na FE.