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- Crescimento evangélico e clivagem política
De acordo com o IBGE, entre 2010 e 2022, os evangélicos saltaram de 21,6 % para
26,9 % da população (47,4 milhões), enquanto o catolicismo recuou para 56,7 %.
Lipset e Rokkan (1967) sustentam que clivagens – divisões sociais duradouras,
como a religião – moldam identidades partidárias e comportamentos eleitorais. O
aumento evangélico consolida um novo eixo político, unindo fé conservadora e
demandas por representação institucional, o que realinha projetos partidários frente
às eleições de 2026. - Ética protestante e meritocracia neoliberal (ou a distorção weberiana:
meritocracia como teologia)
Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2000), argumenta que o
ethos protestante (trabalho ascético, disciplina, sucesso como sinal de benção
divina) favoreceu o surgimento do capitalismo moderno. Hoje, os discursos
neopentecostais amplificam essa tradição ética sob um viés meritocrático neoliberal:
o “você pode vencer” espiritualizado. Esse discurso mobiliza classes populares
mesmo em contextos de exclusão, oferecendo uma narrativa de superação pessoal
que encobre desigualdades estruturais (através de empreendedorismo, uberização,
pejotização).
A teologia da prosperidade (fé igual a riqueza material) fundiu-se ao discurso
neoliberal, pregando que pobreza é falha moral. Pastores-bilionários como Edir
Macedo (Igreja Universal) e Silas Malafaia promovem a meritocracia divina: “Deus
ajuda quem prospera”, não quem demanda direitos.
Como consequência isso desloca conflitos de classe para o campo moral,
justificando desigualdades e desmontando solidariedades. O pobre “merecedor” é o
que adere à fé, não o que reivindica políticas públicas. - Populismo evangélico e autoritarismo religioso
Observa-se no Brasil contemporâneo uma confluência entre populismo e
neopentecostalismo: lideranças carismáticas falam “a voz do povo” com conteúdo
moralista e antissistema. Esse discurso é autoritário, situando-se na linha do
dominionismo 2 , um projeto de influência religiosa total sobre as estruturas do Estado.
A série The Handmaid’s Tale – baseada no romance de Margaret Atwood (1985) –
oferece uma poderosa alegoria do destino possível de sociedades onde
fundamentalismo religioso e poder estatal se fundem. Na distopia de Gilead, valores
religiosos são instrumentalizados para legitimar opressão de gênero, censura,
supressão da liberdade religiosa e violência institucional. O paralelo com setores do
neopentecostalismo brasileiro que pregam submissão feminina, criminalização de
religiões afro-brasileiras e negação de direitos civis não é meramente ficcional, é um
alerta real. - Narcopentecostalismo e erosão da democracia
Nos últimos anos, fenômenos de narcopentecostalismo emergem com força:
traficantes e milicianos adotam símbolos religiosos e impõem moralidades sob
coerção. Casos como o do Complexo de Israel (RJ), onde líderes do tráfico
ordenaram o fechamento de templos católicos e candomblecistas, mostram uma
nova simbiose entre violência e evangelização forçada.
Conforme reportagens da BBC, G1 e O Globo, esses grupos justificam a repressão
a outras religiões com base na “guerra espiritual”, e se organizam com referências
explícitas ao Antigo Testamento, Israel e domínio territorial.
Essa lógica autoritária, com respaldo teológico, mina o Estado laico, expande o
poder informal armado e compromete o pluralismo democrático, substituindo
instituições civis por estruturas religiosas militarizadas.
O Brasil caminha sobre uma linha tênue entre pluralismo religioso e teocratização
populista. A convergência entre (1) clivagem religiosa (Lipset), dividindo a sociedade
em blocos antagônicos; (2) neoliberalismo teológico, ou discurso meritocrático
ascético (Weber), com a naturalização das desigualdades; (3) autoritarismo
miliciano/narco-pentecostal que oferece “ordem” via violência sagrada; e (4)
populismo carismático autoritário, produz um populismo de extrema-direita com
verniz divino, onde: inimigos são satanizados (esquerdistas, religiões afro); a
violência é justificada como “guerra santa”; e a política é esvaziada em favor de
líderes-messias.
Essa combinação configura um cenário de erosão democrática. Assim como em
The Handmaid’s Tale, há risco de que, sob a aparência de ordem moral e
prosperidade espiritual, esconda-se uma tirania baseada em fé institucionalizada e
violência.
Conclusão
A ascensão evangélica no Brasil não é, em si, uma ameaça; o problema reside na
captura da fé por projetos políticos autoritários. Quando o neopentecostalismo se
torna instrumento de controle social, de dominação de corpos e territórios, e de
aliança com forças violentas, a democracia enfraquece. Assim, o paralelo traçado
neste texto com a série The Handmaid’s Tale, não é apenas uma distopia, é um
espelho possível de um país que deixa de resistir à fusão entre púlpito, palanque e
pólvora.
Notas
1 Doutorando em Educação (UNICAMP), Mestre em Ciência Política (UFSCar) e Graduado em
Ciências Sociais (UEL). Diretor de pesquisa de opinião na APPC Consultoria e Pesquisa.
2 Ideologia política e religiosa que defende a aplicação da lei bíblica e a influência cristã em todos os
âmbitos da sociedade. É uma visão que busca a “reconquista” de domínios de sete áreas: família,
religião, educação, mídia, lazer, negócios e governo, com o objetivo de reconstruir a sociedade com
base nos valores cristãos.
Referências
BBC, 04 de julho de 2023. Traficantes evangélicos: a religião na briga por territórios
no Rio.
BBC, 13 de setembro de 2023. Jesus motivacional: quem são os ‘coaches
evangélicos’.
BBC, 02 de janeiro de 2025. A expansão pelo Brasil dos traficantes que se veem
como ‘soldados de Jesus’.
HULU. The Handmaid’s Tale (2017-2025), série de TV criada por Bruce Miller,
baseada na obra de Atwood (1985).
IBGE. Censo Demográfico 2022 (Religião). Rio de Janeiro, 2024.
LIPSET, S.M.; ROKKAN, S. Cleavage Structures, Party Systems, and Voter
Alignments. Free Press, 1967.
O Globo, 31 de outubro de 2021. Tráfico expulsa pais de santo e impõe religião em
comunidades do Rio.
WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Pioneira, 2000.
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Fabrizio Martins Tavoni, Doutorando em Educação na Unicamp, Mestre em Ciência Política na UFSCar e Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela UEL