#educação #sociedade #escolasempartido #vestibularindigena #Durkheim #educacaodurkheimiana #diversidadecultural #politicaseducacionais
Antes de adentrar propriamente nas discussões sobre: a) centralização e descentralização nas políticas educacionais e; b) diversidade cultural e desigualdades sociais, cabe elaborar o panorama de ideias sobre as quais será desenvolvida esta argumentação, qual seja, a teoria funcionalista de Émile Durkheim.
Para Durkheim, a sociedade é composta por uma série de sistemas e subsistemas que atuam para garantir seu funcionamento. Funcionamento este que depende de uma coesão harmônica entre as partes, para que se garanta uma determinada ordem. Para o autor, disposto em validar a sociologia no mesmo hall das ciências naturais, a sociedade funciona como um corpo humano, onde cada órgão possui uma função específica. Desta forma, se um órgão está doente, o corpo funciona mal. De maneira análoga, se alguma parte da sociedade não corresponde ao que se determina como necessário para seu funcionamento, a sociedade não se encontra em ordem, em harmonia. Neste sentido, um componente extremamente importante da teoria funcionalista durkheimiana é o fato social. Em sua análise, os fatos sociais são externos ao indivíduo e exercem uma força coercitiva sobre ele, determinando seu comportamento. A existência dos fatos sociais, então, é profundamente necessária para a ordem da sociedade, pois são eles que determinam o que significa seu funcionamento. Assim, a educação aparece como um fato social, à medida em que é entendida pelo autor como responsável por transformar o ser individual num ser capaz de corresponder ao funcionamento da sociedade. É a educação a responsável por passar às gerações mais novas a moralidade definida pelas gerações mais velhas (DURKHEIM, 2011).
Definido este panorama, discute-se primeiramente de que forma a teoria durkheimiana se aplica aos debates sobre as demandas atuais da educação no que diz respeito à centralização ou descentralização das políticas educacionais brasileiras. Primeiramente, é necessário dizer que, se Durkheim compreende a educação como transmissora da moral e a moral como definida para todos os cidadãos de uma sociedade, a educação durkheimiana evoca a centralização. Isto é, a sociedade, para garantir seu funcionamento, deve transmitir a seus pequenos cidadãos em formação um conjunto de valores já pré-estabelecidos como desejáveis pela maioria a fim de que, quando cresça, este indivíduo possa agir de forma a contribuir com a coesão e a ordem social, seguindo seu devido papel (DURKHEIM, 2011). Dessa forma, sua teoria parece sugerir uma educação centralizada, para garantir que a mesma moral seja ensinada a todos os indivíduos daquela sociedade.
Ainda que o autor reconheça que a educação também tem caráter múltiplo no que diz respeito às variações entre as diferentes classes sociais, sua multiplicidade está muito mais focada na especialização ligada à especialização do trabalho e, portanto, serve a uma moral comum, porque serve à ordem estabelecida da sociedade. Nesse sentido, a base comum (centralizada, então) da educação merece ser questionada. O caso do Brasil é bastante privilegiado para a análise da demanda por descentralização, principalmente porque se trata de um país de dimensões continentais, onde realidades, culturas e necessidades distintas compartilham o mesmo espaço. Um dos principais pontos favoráveis à descentralização diz respeito justamente a esta necessidade de atender a demandas e interesses distintos. O debate pela descentralização ganha nova força após o fim da Ditadura Militar e com a promulgação da Constituição de 1988, que garante aos estados e municípios a prerrogativa de atuar nas políticas públicas de seus territórios (CRUZ, 2009 apud MELO, 2022). Nesse viés, é possível dizer que a descentralização emerge também atrelada a um debate por um país mais democrático e plural, ao mesmo tempo em que se apoia nas necessidades econômicas díspares entre estados e entre municípios (GRINKRAUT, 2012 apud MELO, 2022).
Contudo, é importante destacar que a descentralização não é sinônimo de uma educação ou de um país democráticos. Os avanços e a radicalização de grupos de extrema direita apontam a um perigo crescente para grupos minoritários da sociedade brasileira, que têm se traduzido incessantemente na educação. Projetos de Lei como o famigerado Escola Sem Partido são o retrato de um grupo social que acredita na imposição da sua moral individual no âmbito da educação. Em termos durkheimianos, estes grupos, ao não se comprometerem com a educação e com a moral ensinada por ela, produzem indivíduos anômicos, ou seja, que tensionam o funcionamento coeso da sociedade (LESSA et al. 2019). No mesmo tom do Projeto Escola Sem Partido, o avanço dos debates em defesa do homeschooling advogam pela autorização de que cada família transmita unicamente seus próprios valores aos filhos, sem a interferência externa da educação institucionalizada, o que eleva ainda mais o nível de descentralização da educação. Há dois pontos a serem corroborados pela teoria de Durkheim neste aspecto:
Ainda que estes projetos e debates promovidos pelos grupos da nova direita brasileira reivindiquem uma educação sem influências de valores externos, os fatos sociais são inexoráveis, de modo que os indivíduos não ensinados a uma moral comum serão anômicos, isto é, disfuncionais.
Mesmo àqueles que advogam por uma educação descentralizada no que diz respeito à formação de currículos e de distribuição de financiamento, o debate sobre a centralização deve ser levado em consideração no que tange à garantia dos direitos democráticos. É primordial que seja criticada uma ideia de moral tão rígida e una conforme proposta por Durkheim, mas algum nível de centralidade e de moral comum são necessários para frear os avanços antidemocráticos da extrema direita brasileira. O respeito à existência de grupos minoritários e a garantia de sobrevivência de saberes diversos devem ser pontos de partida inegociáveis para a formação das políticas educacionais, ainda que todo o resto seja disputável.
Cabe, ainda, realizar uma última crítica à teoria de Durkheim no âmbito das discussões sobre centralização, para que se siga ao debate acerca das desigualdades e diversidades. Debate este que inevitavelmente liga os dois temas: o que define determinada moral como desejável? O funcionamento do sistema indica necessariamente um bom sistema? Em Durkheim, estas respostas são encontradas na função reguladora do Estado e na crença de sua neutralidade. Para o autor, é o Estado que deve garantir os direitos essenciais dos indivíduos e gerir os subsistemas para que o sistema funcione ordenadamente (DURKHEIM, 2011). Ainda que assuma uma heterogeneidade nas teorias acerca da educação, Durkheim indica no Estado o responsável pela garantia da coesão social também neste aspecto.
Um dos autores possivelmente utilizados para criticar essa visão de Durkheim é justamente Karl Marx, ainda que escreva anteriormente ao francês. Seu alerta sobre o Estado como histórica e economicamente desenvolvido em favor da classe dominante questiona a neutralidade proposta: “O moderno poder de Estado é apenas uma comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa.” (MARX & ENGELS, 1997, p.16). Ou seja, a moral desenvolvida e transmitida pela educação está em favor de uma classe com interesses específicos. É possível dizer que, para esta classe, a sociedade está em funcionamento, enquanto apresenta-se como absolutamente disfuncional para as classes oprimidas. Advoga-se a partir de Marx, portanto, uma educação que questione o sistema, e não simplesmente se conforme a ele.
O questionamento de uma moral homogeneizante passa necessariamente pelos debates acerca da diversidade e das desigualdades sociais. O próprio Durkheim argumenta que a educação é múltipla também porque se difere a depender das classes sociais que a desenvolvem. Para ele, contudo, o objetivo da resolução das desigualdades profundas seria sempre o desenvolvimento da solidariedade e das liberdades em favor, novamente, da integração social, de modo que a superação das desigualdades também deveria servir à ordem do sistema. Neste mesmo sentido, a diversidade aparece através da especialização na formação de cada indivíduo sempre e enquanto sirva à necessidade de especialização do trabalho, integradas harmoniosamente a fim de que cada indivíduo desenvolva seu papel para garantir o funcionamento da sociedade (DURKHEIM, 2011; LESSA, 2019).
Para discutir outro lugar possível da diversidade e das desigualdades na educação, um exemplo proveitoso é o da educação indígena, especialmente no que diz respeito à sua introdução no âmbito da universidade. Na Unicamp, a implementação do vestibular indígena trouxe 550 novos alunos de diversas etnias para dentro da universidade. Contudo, ao final de 2024, apenas 5 haviam se formado e a instituição se confrontava com altas taxas de evasão. Para resolver a situação, foi desenvolvido o Programa Formativo Intercultural para Ingressantes pelo Vestibular Indígena (ProFIIVI), que consiste em um ano extra, anterior à graduação, e que pretende mitigar as deficiências na formação anterior destes indivíduos. Primeiramente, o Programa assume que a taxa de evasão está relacionada à falta de preparo dos alunos indígenas, que não conseguem “acompanhar” as disciplinas da universidade. Em segundo lugar, a proposta é fortemente criticada pelos acadêmicos indígenas porque condiciona o acesso ao curso de graduação somente se o aluno for aprovado nas 7 disciplinas obrigatórias do Programa.
O que se observa neste cenário é uma tentativa de encaixar alunos carregados por epistemologias muito distintas num conjunto de valores pré-determinados como academicamente válidos. É a teoria de Durkheim sobre a educação funcionalista posta em prática. É claro que a universidade deve se comprometer com seu rigor acadêmico e científico, mas precisa levar em consideração que a entrada de alunos indígenas na universidade não é uma chance de conformá-los ao sistema e, sim, questionar e oferecer novas visões a um sistema aparentemente consolidado. A uma universidade que se tem comprometido com seus valores democráticos, não é mais possível considerar os saberes distintos trazidos pelas comunidades indígenas como anômicos dentro de uma sociedade que funciona. O filósofo indígena Ailton Krenak atenta para esta homogeneização da moral, que está intimamente ligada com a ideia de que só há um “jeito certo” de viver e de fazer: “Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito certo de estar aqui na Terra, uma certa verdade, que guiou muitas escolhas feitas em diferentes períodos da história.” (KRENAK, 2019, p.11).
Referências Bibliográficas:
- DURKHEIM, E. A educação, sua natureza e o seu papel. e Natureza e método da pedagogia in: Educação e Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2011 pp. 43-96;
- G1. 550 indígenas, 5 formados: falta de inclusão social é desafio após consolidação do vestibular na Unicamp. G1 Campinas e Região, 19 abr. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2024/04/19/550-indigenas-5-formados-falta-de-inclusao-social-e-desafio-apos-consolidacao-do-vestibular-na-unicamp.ghtml. Acesso em: 16 abr. 2025;
- G1. Unicamp cria ano extra com disciplinas preparatórias para indígenas; alunos criticam. G1 Campinas e Região, 25 maio 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/educacao/noticia/2024/05/25/unicamp-cria-ano-extra-com-disciplinas-preparatorias-para-indigenas-alunos-criticam.ghtml. Acesso em: 16 abr. 2025;
- KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019;
- LESSA, B. et al. A educação moral em Émile Durkheim e as disputas contemporâneas em torno do sistema formal de ensino brasileiro. Educação Unisinos – v.23, n. 2, abril-junho 2019;
- MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo:Avante!, 1997;
- MELO, Pedro Thiago Costa. Descentralização e centralização e as políticas públicas educacionais no Brasil. Revista Cadernos de Educação do Sertão do São Francisco, [S.l.], v. 1, n. 1, p. 1–15, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpi.br/index.php/cedsd/article/view/2644. Acesso em: 15 abr. 2025.
…………………………………
Ana Júlia dos Santos, Bacharela e Licenciada em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Revisão: Renata Seta