ANÍSIO TEIXEIRA: CLÁSSICO
DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Dermeval Saviani
Gramsci, no Caderno 12 de suas notas do cárcere, depois
incluídas no volume “Os intelectuais e a organização
da cultura”, faz a seguinte observação:
“Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na
forma dada pelo método Dalton. Toda escola unitária é
escola ativa, se bem que seja necessário limitar as ideologias libertárias
neste campo e reivindicar com uma certa energia o dever das gerações
adultas, isto é, do Estado, de ‘conformar’ as novas gerações.
Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na qual os
elementos da luta contra a escola mecânica e jesuítica se
dilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica: é
necessário entrar na fase ‘clássica’, racional, encontrando
nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e as
formas”. (Gli Intellettuali, p.132 – na tradução brasileira,
p.124).
E o que é a fase clássica? É a fase em que ocorreu
uma depuração, superando-se os elementos próprios
da conjuntura polêmica e recuperando-se aquilo que tem caráter
permanente, isto é, que resistiu aos embates do tempo. Clássico,
em verdade, é o que resistiu ao tempo. É nesse sentido que
se fala na cultura greco-romana como sendo clássica, que Descartes
é um clássico da filosofia, Dostoievski é um clássico
da literatura universal, Machado de Assis, um clássico da literatura
brasileira e, acrescento então, Anísio Teixeira é
um clássico da educação brasileira. Dizer que Anísio
Teixeira é um clássico da educação brasileira
significa dizer que sua obra, embora resultante dos problemas postos pela
época compreendida entre os anos vinte e os anos sessenta do século
XX, ultrapassa essa época adquirindo validade universal e se tornando
referência para outros períodos históricos. Nessa condição,
o estudo de sua produção teórica e prática
se torna uma exigência para a formação das novas gerações
de educadores, assim como para a compreensão e equacionamento dos
problemas educativos que a sociedade brasileira vem enfrentando.
Aliás, entendo que o conceito de clássico é uma
diretriz segura para a organização do currículo formativo
das novas gerações. Isto porque ele aponta para o essencial
da produção histórica da humanidade que cada indivíduo
humano deve absorver para que se torne humano, vale dizer, para que se
capacite a viver ativamente a condição humana ganhando condições
de dar continuidade ao processo de construção da própria
existência como sujeito histórico. Assim, a despeito das novidades
que tanto atrativo exercem sobre a mentalidade pedagógica, alimentando
românticas polêmicas, não são esses elementos
que devem orientar a organização dos currículos escolares.
De passagem, lembro que o próprio Marx também tinha esse
entendimento tendo afirmado taxativamente que os assuntos objeto de controvérsia,
isto é, as questões polêmicas, não deveriam
integrar os currículos escolares.
Anísio Teixeira manifestou com clareza a percepção
dessa problemática. Educador progressista; discípulo de Dewey;
admirador da cultura e educação americanas, estava atento
às condições brasileiras e não transplantava,
simplesmente, o sistema americano e não encarava de forma romântica
os princípios da educação renovada disseminadas pelo
movimento conhecido por “escolanovismo”. Eis como Clarice Nunes situa a
relação de Anísio Teixeira com Dewey no verbete “Anísio
Teixeira” que redigiu para o Dicionário de Educadores no Brasil:
da colônia aos dias atuais, organizado por Maria de Lourdes de Albuquerque
Fávero e Jader de Medeiros Britto, publicado pela Editora UFRJ e
INEP, Rio de Janeiro, 1999:
“Anísio Teixeira não assimilou Dewey incondicionalmente.
Ao contrário dele, que acreditava no pleno êxito das reformas
educativas em países pouco desenvolvidos pela ausência de
tradições culturais aí arraigadas, conhecia e denunciou
criticamente a força dessas tradições na sociedade
brasileira. Ao contrário de Dewey, que em nenhum momento indicou,
na sua vasta obra, quaisquer medidas de aferição de inteligência
ou de escolaridade, Anísio aplicou-as nas escolas da rede pública,
na década de 30. Se Dewey permaneceu como pensador independente,
não se filiando a qualquer partido, para defender a reforma do Governo
Municipal carioca, Anísio Teixeira chegou até a redigir um
programa partidário. Se Dewey nunca entrou na polêmica entre
escola confessional e escola pública, Anísio mergulhou em
cheio nela, assumindo também a crítica deweyana dirigida
tanto à escola tradicional quanto à Escola Nova, o respeito
ao pluralismo e a um pragmatismo temperado pela sua formação
em colégios jesuítas e a sua experiência na política
regional”(p.59).
Acrescento que, também diferentemente de Dewey, Anísio
reconheceu a importância de se organizar o ensino na forma de um
sistema articulado envolvendo, inclusive, a disposição de
órgãos centralizados. Assim, quando assumiu nos anos trinta
o posto de Secretário da Instrução Pública
do Distrito Federal, criou os serviços centralizados de matrícula,
de freqüência e obrigatoriedade escolar. Conforme o testemunho
de Paschoal Lemme que com ele trabalhou nessa gestão, “as escolas
antes isoladas, tendo que resolver problemas sozinhas, passaram a ser comandadas
como um todo por esses serviços centrais, que distribuíam
os alunos de acordo com a existência de vagas, procurando assim atender
sempre ao maior número possível em cada bairro”. E continua:
“além disso, a apuração da aprendizagem dos alunos
passou a ser feita por meio de provas – ‘os testes de escolaridade’ – elaboradas
por um serviço central especializado. Essas provas eram recebidas
pelas escolas, que apenas as aplicavam, ficando a responsabilidade da apuração
e da classificação, enfim do aproveitamento dos alunos, a
cargo desse serviço central” (Paschoal LEMME, Memórias. São
Paulo, Cortez / Brasília, INEP, 1988, vol.2, p.135-6).
Na trajetória de Anísio Teixeira podemos ver reunidas
as figuras do pensador da educação, do administrador do ensino
público, do organizador da pesquisa pedagógica e do incansável
defensor do direito de todos os brasileiros a uma educação
pública de qualidade. Nesse último caso ele se revelou um
verdadeiro estadista da educação, um publicista, envolvendo-se
a fundo nas disputas e polêmicas que marcaram o ensino no país
ao longo de sua vida.
Como pensador da educação deixou-nos um conjunto significativo
de publicações na forma de numerosos artigos em revistas
e jornais, conferências, relatórios e pareceres e diversos
livros que nos trazem reflexões filosóficas, análises
históricas, críticas e propostas de política educacional
que insistentemente põem em evidência os recorrentes problemas
da nossa educação esclarecendo-nos sobre eles e indicando
caminhos para a sua solução. Entre os livros destacam-se
Aspectos americanos da educação, 1928; Educação
progressiva: uma introdução à filosofia da educação,
publicado em 1932 sendo que, a partir da quinta edição, em
1967, por decisão do autor inverteram-se título e subtítulo,
passando a se chamar Pequena introdução à filosofia
da educação: a escola progressiva ou a transformação
da escola; Em marcha para a democracia, 1934; Educação para
a democracia: introdução à administração
escolar, 1936; A educação e a crise brasileira, 1956; Educação
não é privilégio, 1957; Educação é
um direito, 1967; Educação no Brasil, 1969; Educação
e o mundo moderno, 1969. Observe-se que essas suas obras vêm sendo
reeditadas pela Editora UFRJ.
Como administrador do ensino assumiu as secretarias de educação
da Bahia e do Distrito Federal, então no Rio de Janeiro, a coordenação
da CAPES e a direção do INEP e criou instituições
como a Universidade do Distrito Federal, as escolas parque da Bahia, a
Universidade de Brasília.
Como organizador da pesquisa pedagógica, criou o Centro Brasileiro
de Pesquisas Educacionais (CBPE) sediado no Rio de Janeiro, então
capital do país e os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais,
distribuídos estes por cinco capitais, a saber: Belo Horizonte,
Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.
Como transparece já nos próprios títulos de seus
livros, o grande tema de sua obra teórica e prática e, portanto,
de sua vida, foi a relação educação-democracia.
E sua grande luta à qual se dedicou por inteiro, foi em torno da
instituição de uma escola democrática e popular que
garantisse a todos os brasileiros uma educação qualitativamente
à altura das exigências da sociedade moderna em crescente
industrialização e urbanização.
Educador por opção, entre promissoras carreiras que se
lhe descortinavam na política e na atividade empresarial, decidiu-se
pela educação numa época em que a atividade educativa
não tinha status de profissão. Abraçando a carreira
educativa se empenhou em dar bases científicas para a teoria pedagógica
e estatuto profissional à prática pedagógica. Para
tanto organizou instituições de pesquisa e deu especial atenção
à questão da formação de professores. Por isso,
em 1935, ao fundar a Universidade do Distrito Federal, nela absorve o Instituto
de Educação que, sob a denominação de Escola
de Educação, eleva a formação de professores
primários ao nível superior.
Em suma: Anísio Teixeira não é apenas um marco
na história da educação brasileira que deve ser estudado
para conhecermos uma importante faceta e um personagem fascinante do nosso
passado educativo. Ele deve ser estudado porque, tendo se tornado clássico,
nos deixou uma obra que ultrapassa a sua época e contém elementos
que são essenciais à nossa própria formação
e que iluminam o nosso entendimento de problemas que continuam a desafiar
a nossa capacidade analítica e a nossa disposição
para a ação.
No centenário do nascimento de Anísio, à semelhança
de Marx que, crítico de Hegel, o proclamou grande pensador, rendo
minha homenagem ao grande educador Anísio Teixeira de cuja luta
somos herdeiros. Com efeito, dizia ele em 1947, por ocasião da discussão
do capítulo de Educação e Cultura da Constituição
do Estado da Bahia: “Sobre assunto algum se falou tanto no Brasil, e em
nenhum outro, tão pouco se realizou. Não há, assim,
como fugir à impressão penosa de nos estarmos a repetir”.
Ora, exatamente porque tão pouco se realizou no campo da educação
em nosso país, somos forçados a continuar insistindo nos
pontos que Anisio Teixeira, segundo seu próprio testemunho, se cansara
de repetir. Sua luta de ontem é, ainda, a nossa luta de hoje.