Da FE-Unicamp para o debate público sobre tecnologia e democracia
O Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Unicamp (FE-Unicamp) indicou o pesquisador Henrique Zoqui Martins Parra como Egresso Destaque 2025 na categoria pós-graduação. Docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e integrante da Rede Latino-Americana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS), Parra teve sua trajetória reconhecida por uma produção intelectual consistente e por uma atuação comprometida com o ensino, a pesquisa e a extensão na área da Educação.


Instituído por deliberação do Conselho Universitário, o Prêmio Egresso Destaque da Unicamp reconhece ex-alunos e ex-alunas que se destacaram em suas áreas de atuação profissional, reforçando o vínculo da universidade com aqueles que seguem produzindo conhecimento e impacto social depois da formação. Mais informações sobre a iniciativa podem ser encontradas na deliberação CONSU-A-014/2023, que cria o prêmio. A cerimônia de entrega do prêmio será realizada no dia 15/12/25, às 15h00, no Centro de Convenções da UNICAMP (auditório 1) – Avenida Érico Veríssimo, 500 – Cidade Universitária, Campinas/SP. Haverá transmissão ao vivo através do link:
Quando as tecnologias nos moldam
Ao comentar o significado do prêmio, Parra chama a atenção para uma escolha que atravessa toda a sua trajetória acadêmica: inverter a pergunta mais comum quando se fala de tecnologia e educação. Em vez de perguntar “como usar tal tecnologia no ensino ou na pesquisa”, ele propõe começar por outra questão: “como é que as tecnologias já estão nos educando?”.
A resposta, segundo ele, passa por abandonar a ideia de que as tecnologias digitais são meras ferramentas neutras a serviço de objetivos previamente definidos. “Tomamos as tecnologias como ambiências com as quais nos relacionamos com o mundo”, explica o pesquisador. Isso significa investigar como elas funcionam, mas também como, ao usá-las, “elas nos fazem sentir, pensar e fazer coisas diferentemente”, transformando valores, sensibilidades, formas de raciocinar e modos de estar em sociedade.
Do “Leviatã” à “Rede”: quem manda no nosso mundo conectado?
Essa chave de leitura já aparecia na tese de doutorado de Henrique Parra, intitulada “O Leviatã e a Rede”, defendida na FE-Unicamp. No trabalho, o pesquisador examina as transformações nas formas de produção, acesso e circulação do conhecimento promovidas pela internet entre o fim dos anos 1990 e a primeira década dos anos 2000.
O “Leviatã”, lembra Parra, não é apenas o Estado em sentido estrito, mas uma imagem de certa configuração de mundo, tecida entre formas de conhecimento, regimes de visibilidade e técnicas de poder. De um lado, havia um momento de abertura e democratização – o que ele chama de “breve verão da Internet contra-hegemônica”. De outro, surgiam novas formas de centralização e controle, tanto político quanto econômico.
Parra descreve como essa tensão inicial foi dando lugar a um processo de “colonização e reorganização de todo o ecossistema digital” por grandes empresas privadas de tecnologia e por estruturas de poder político-estatal. O diagnóstico, que já se insinuava em sua tese, torna-se ainda mais agudo no presente, em que plataformas e infraestruturas digitais passam a organizar dimensões íntimas e ordinárias da vida – das relações pessoais às práticas educacionais, financeiras e políticas, incluindo o funcionamento de cidades e governos. Essa configuração, argumenta o pesquisador, se apresenta como um poder tecnocrático orientado por uma racionalidade corporativa que ameaça e corrói práticas e instituições democráticas.
Viver conectado: como o digital mexe com o que pensamos e sentimos
Outra frente de pesquisa de Henrique Parra diz respeito ao “Tecnoceno” e às formas de vida cibermediadas. Em termos simples, trata-se de pensar como a mediação digital e a dataficação reconfiguram nosso cotidiano, nossos saberes e nossos modos de agir politicamente.
Hoje é difícil imaginar uma atividade diária que não passe por algum tipo de tecnologia digital-cibernética: trabalhar, estudar, se deslocar, cuidar da saúde, se relacionar afetivamente, consumir informação. “Sabemos que as tecnologias não são neutras”, afirma.
Por isso, em suas investigações, ele busca compreender como essas mediações transformam a maneira como lemos e interpretamos o mundo, como reconhecemos o real e o verdadeiro, como percebemos nossas relações e a nós mesmos. Trata-se de uma mudança profunda de sensibilidade e de racionalidade, que impacta tanto a sala de aula quanto a esfera pública.
Tecnologias para outro mundo possível
Esse olhar crítico não se esgota em apontar problemas. Parte central da reflexão de Parra está voltada para a necessidade de imaginar e construir outros arranjos sociotécnicos capazes de enfrentar o colapso civilizatório e socioambiental em curso. Ele observa que grande parte das tecnologias digitais que utilizamos foi concebida para produzir praticidade, agilidade e produtividade, materializando uma cosmovisão que favorece o crescimento infinito, a competição, o extrativismo e a expansão militar e corporativa.
Se quisermos “bifurcar” esse caminho, diz o pesquisador, será preciso deliberar coletivamente sobre a criação tecnológica e apostar em tecnologias orientadas por outros valores: a suficiência em vez da lógica do crescimento a qualquer custo, os cuidados coletivos em vez da autossuficiência individualizante, os bens comuns em vez da extração de valor e concentração de renda, a comunalidade em oposição ao sujeito concorrencial e narcísico das redes sociais, a autonomia e o autogoverno democrático em vez de formas opacas de controle.
Nesse sentido, Parra aproxima a discussão sobre tecnologia de debates sobre colonialidade, racialidade, gênero e cosmopolítica. Ele ressalta que, no Brasil e na América Latina, há muito a aprender com povos indígenas, comunidades quilombolas, mulheres, pessoas racializadas e coletivos em luta por direitos, que expõem cotidianamente como a “ordem técnica do mundo” produz e reproduz desigualdades históricas. A ideia de “diversidade cosmotécnica”, que aparece em seus trabalhos, está ligada justamente à possibilidade de articular outras cosmovisões e práticas tecnológicas, capazes de sustentar formas de vida menos destrutivas e mais solidárias.
Quando a pesquisa se encontra com as lutas sociais
Essa preocupação em deslocar o centro da produção de conhecimento também orienta as experiências de extensão e pesquisa colaborativa coordenadas por Henrique Parra. Ele destaca que a presença crescente de sujeitos historicamente vulnerabilizados e marginalizados nas universidades públicas tem provocado transformações internas importantes, mas lembra que as formas habituais de ensinar, pesquisar e se relacionar com públicos externos ainda reproduzem, com frequência, colonialidade e assimetrias entre diferentes regimes de conhecimento.
Ao desenvolver projetos em parceria com movimentos sociais, coletivos, associações e grupos de base, Parra insiste em reconhecer esses atores como “coletivos políticos que são também atores cognitivos-epistêmicos”. A partir dessa perspectiva, práticas científicas mais dialógicas – tanto na produção quanto na circulação do conhecimento – podem contribuir para respostas mais robustas às múltiplas crises que atravessamos. Para o pesquisador, a chamada “crise de legitimidade científica” e os fenômenos usualmente agrupados sob o rótulo de “pós-verdade” estão profundamente imbricados com a crise política e democrática contemporânea.
Criar conhecimentos científicos capazes de apoiar “melhores respostas coletivas para o colapso civilizacional que produzimos”, afirma Parra, depende também da invenção de novas formas políticas que transformem nossos modos de educar e de produzir saberes.
O que a trajetória de Henrique Parra diz sobre a Educação hoje
Ao reconhecer Henrique Parra como Egresso Destaque 2025, o Programa de Pós-Graduação em Educação da FE-Unicamp não celebra apenas uma trajetória individual bem-sucedida, mas também uma forma de fazer pesquisa em educação que enfrenta questões urgentes do presente: o papel das tecnologias nas práticas de formação, a defesa da democracia diante de poderes tecnocráticos e corporativos, a busca por outros mundos possíveis fundamentados em experiências de resistência e reinvenção. Para os estudantes e pesquisadores da área, sua trajetória é um lembrete de que refletir sobre a educação hoje implica, necessariamente, perguntar não só como ensinamos com as tecnologias, mas também como queremos ser educados por elas – e com quem desejamos construir essas respostas.
