Juliana Marques Lourenço | Atualizado em 11/12/2020 - 07:58 Notícia

Faculdade de Educação da Unicamp divulga manifesto "Vidas negras importam"

A Faculdade de Educação da Unicamp torna público o Manifesto "Vidas Negras Importam"contra o racismo e todas as demais formas de discriminação. O documento foi aprovado na 344ª Reunião Ordinária da Congregação da Unidade, realizada no dia 24 de junho de 2020. 

Leia abaixo o manifesto na íntegra:

“VIDAS NEGRAS IMPORTAM”
Manifesto da Faculdade de Educação da UNICAMP contra o racismo

No último dia 25 de maio o mundo assistiu atônito ao assassinato do cidadão americano George Floyd, por um policial branco, que o sufocou até a morte com o joelho sobre o pescoço, em plena luz do dia, na cidade de Minneapolis. A cena pôs a descoberto o racismo estrutural e institucional secular que vigora naquele país e mobilizou protestos em diversas nações.

No Brasil, diariamente nos deparamos com notícias de crianças, jovens, mulheres e homens negros assassinados, em geral pelas forças policiais. Em março de 2017, Maria Eduarda da Alves da Conceição, de 13 anos, foi alvejada durante operação policial, dentro de sua escola, em Acari (RJ), enquanto fazia aula de educação física. Segundo a mãe, a menina dizia que estudava para dar um futuro melhor à família. No dia 4 de julho de 2017, Vanessa Vitória dos Santos, de 11 anos, morreu baleada quando policiais militares invadiram sua casa, na favela Camarista Méier, no Rio de Janeiro. Ela havia voltado da escola e estava calçando o chinelo para ir para a casa da tia. Há cinco anos, seu tio também havia morrido baleado na cabeça. Em fevereiro de 2018, Jeremias Moraes da Silva, de 13 anos, foi morto a tiros pela polícia, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, enquanto ia para a escola. Desconsolada, sua mãe declarou: “É só voltar às aulas que começa esse inferno. Parece que eles combinam que quando as crianças voltam às aulas tem que ter operação na comunidade". Jeremias queria ser pastor. Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, foi morta no dia 20 de setembro de 2019, quando voltava para casa com a mãe, em uma Kombi, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. João Pedro, de 14 anos, foi baleado pelas costas, em 18 de maio de 2020, dentro da casa de um primo, onde brincava, durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ). Sonhava em ser advogado. Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, no dia 2 de junho, caiu do 9º. andar de um edifício, depois de ter sido deixado aos cuidados da patroa de sua mãe. Ele fora com a mãe para o trabalho por estar sem aulas na creche, fechada devido à pandemia do novo Coronavírus.

Casos como esses, e milhares de outros que permanecem anônimos ou são apagados, muitas vezes com a anuência do atual governo federal, evidenciam o racismo historicamente incrustrado na cultura, nas instituições e nas mentes brasileiras. Mostram que, no Brasil, as balas, perdidas – ou bem direcionadas –, em geral disparadas por agentes do Estado, têm um alvo preferencial: crianças e jovens negros, pobres, das periferias, o que converte nosso racismo estrutural e cultural também em racismo de Estado.

Mas as crianças não são as únicas vítimas. Em março de 2018, Marielle Franco, mulher negra, mãe, socióloga, lésbica, feminista, vereadora na cidade do Rio de Janeiro, que lutava contra a desigualdade e a opressão do provo negro e pobre das comunidades, foi brutal e covardemente assassinada, juntamente com seu motorista Anderson Gomes. Até hoje o crime não foi plenamente esclarecido e os mandantes não foram identificados.

No último dia 8 de junho, a sala virtual em que acontecia o webinário “Atlântico Negro”, promovido pela Universidade Federal da Bahia, foi invadida por vozes e imagens que impediram a fala da Profa. Dra. Lucilene Reginaldo, da UNICAMP, e a dos demais participantes. A ação violenta, autoritária e racista, praticada por milicianos virtuais, visava a combater os avanços, ainda tímidos, que o movimento negro e, por meio dele, toda a sociedade brasileira, conquistaram nas últimas décadas no sentido de reparar as históricas injustiças provocadas pelos mais de 300 anos de escravidão oficial no Brasil.

Como disse o ativista negro e ex-Presidente da África do Sul, Nelson Mandela, “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”. Sem dúvida, o racismo tão arraigado na sociedade brasileira e que diariamente exclui, humilha, ameaça e mata o povo negro, é fruto de um longo aprendizado que persiste ainda hoje: do ódio racial, da naturalização da discriminação pela cor da pele, da intolerância com o diferente e da aceitação da desigualdade entre negros e brancos. É preciso, portanto, reagir, resistir e seguir lutando não apenas pela manutenção, mas também pela ampliação das conquistas já obtidas, pois ainda há muito a avançar.

Mas se o racismo foi historicamente ensinado e aprendido, a educação também pode ser um veículo para a sua superação. Para tanto, porém, o primeiro passo é fazer com que a escola seja um local seguro também para as crianças negras; que seja, também para elas, um espaço de acolhimento, de fortalecimento da personalidade e de estímulo à autoestima; um terreno onde possam florescer sonhos, sorrisos e a esperança de um futuro com justiça e igualdade; uma experiência de formação humana e científica capaz de formar pessoas autônomas, críticas e preparadas para a prática da cidadania. Além disso, é preciso garantir, de uma vez por todas, em todas as escolas, o aprendizado das culturas africana e indígena e da valorização da diversidade étnica e cultural da sociedade brasileira. Por fim, cumpre defender e ampliar as ações afirmativas, como a implantação do sistema de cotas para ingresso na Universidade, assegurando aos jovens negros as mesmas oportunidades concedidas aos demais.

A Faculdade de Educação da UNICAMP vem, pois, a público se manifestar veementemente contra o racismo e todas as demais formas de discriminação e conclamar todos os educadores a se engajar na luta pela sua superação e em defesa da justiça, da igualdade social e da vida humana, em especial do povo negro.