Os desafios para construção de uma identidade afrodescendente

Seminário especial ministrado na FE com Vice-Reitor da UPMaputo (Fotografia: Antoninho Perri)

Professor catedrático e vice-reitor da Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique), o filósofo e escritor moçambicano José Castiano, foi convidado pela Faculdade de Educação (FE) da Unicamp a ministrar o seminário especial concentrado Bantu, Munthu, Ubuntu e o Intermunthu: Categorias para um Diálogo com as Filosofias Afro-Brasileiras, ocorrido em fevereiro último. O seminário aconteceu no âmbito do acordo de cooperação internacional firmado entre as duas instituições, que pretendem fomentar projetos de pesquisa por meio de intercâmbio de docentes, pesquisadores, servidores e estudantes de graduação e pós.

Reeleito por mais cinco anos para atuar na vice-reitoria da universidade moçambicana, onde coordena pedagogicamente cerca de 14.900 mil estudantes e 600 docentes, o professor avalia os desafios que os jovens enfrentam para compreender a cultura africana e para construir uma identidade afrodescendente sólida e informada. Como filósofo, ele ressalta a necessidade de um debate aprofundado sobre essa identidade, combatendo estereótipos e promovendo o conhecimento real da cultura africana. “Devemos construir pontes entre o Brasil e a África para fortalecer esse entendimento e enriquecer nossa perspectiva sobre o mundo”, enfatiza.

 

Confira a entrevista completa:

Jornal da Unicamp (JU) – Professor, qual a importância do intercâmbio acadêmico entre o Brasil e a África na formação de jovens afrodescendentes?

José Castiano – A aproximação entre o Brasil e a África é fundamental para preencher lacunas históricas no ensino sobre a cultura afro-brasileira e a africana. A Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras na rede de ensino pública e privada do Brasil, representou um avanço, mas os conteúdos ainda não são ensinados de maneira efetiva. E muitos afro-brasileiros não têm experiência quando se trata de dar aula sobre esses temas. Nossa cooperação visa trazer a experiência africana em sua história e cultura para promover o diálogo e a troca de conhecimentos.

JU – Muitos jovens no Brasil teriam uma visão romantizada da África? Como isso impacta a construção da identidade afrodescendente?

José Castiano – A romantização da África cria uma percepção equivocada. Muitos jovens acreditam que nações como os iorubás e os bantos ainda existem como entidades políticas no continente, quando, na realidade, os países africanos já consolidaram suas fronteiras nacionais. Precisamos atualizar essa visão. A África não é um bloco único, e suas crenças, suas culturas e seus desafios mudaram ao longo dos anos. Essa percepção errônea prejudica a construção de uma identidade afrodescendente fundamentada na realidade. De qualquer modo, os jovens afro-brasileiros são os mais avançados nesse movimento do pensamento, que se iniciou por meio dos livros africanos introduzidos na educação e que prosseguiu com grandes pensadores, como o primeiro deles, Abdias Nascimento [1914-2011], reconhecido como o mais completo intelectual e homem de cultura do mundo africano do século XX e que promoveu essa ligação entre a ancestralidade africana e a afro-brasilidade.

JU – O pan-africanismo pode contribuir para essa atualização do pensamento?

José Castiano – O pan-africanismo surgiu, nos séculos XVIII e XIX, como uma luta contra a escravização e o colonialismo. Hoje, ele se transformou em um movimento político, representado pela União Africana [UA] e pela Agenda 2063, que projeta o desenvolvimento do continente. Transmitir esse conhecimento aos jovens é essencial para que não continuem sonhando com uma África que já não existe, mas, sim, compreendam sua realidade e seus desafios contemporâneos.

Na fotografia, há um grupo de pessoas, em uma aula aberta. Várias mulheres e um homem negro estão sorrindo e posam em pé para a foto, vestidos de forma casual. Há uma grande tela de televisão na parede atrás deles, com várias janelas mostrando diferentes atividades, paredes de madeira.
Seminário especial ministrado na Faculdade de Educação abordou o diálogo com as filosofias afro-brasileiras (Fotografia: Antoninho Perri)

JU – Qual o impacto das mídias na construção da imagem da África entre os jovens?

José Castiano – A mídia desempenha um papel central na formação dessas percepções. Muitas vezes, a África é retratada apenas por suas dificuldades – pobreza, conflitos e crises –, ignorando-se sua riqueza cultural e suas contribuições para o mundo. Isso faz com que os jovens afrodescendentes não se sintam orgulhosos de sua ancestralidade. Além disso, algumas influências religiosas, como as igrejas pentecostais, reforçam visões negativas ao associar práticas tradicionais a elementos demoníacos. Precisamos desconstruir essas narrativas e valorizar as contribuições africanas para a humanidade.

JU – É nesse sentido que a educação deve ir além do conteúdo e ensinar valores, como o senhor pontuou?

José Castiano – O ensino não pode se limitar a pacotes de disciplinas. Devemos priorizar valores como respeito, tolerância e todas as justiças – social, climática… Antes de formar profissionais, precisamos formar seres humanos. Além disso, na era digital, enfrentamos o desafio de humanizar o aprendizado. A inteligência artificial é uma ferramenta poderosa, mas não pode substituir a sensibilidade humana. Precisamos garantir que a tecnologia seja usada de forma ética e humanizada.

JU – Como os jovens podem se aproximar da realidade africana sem necessariamente viajar para o continente?

José Castiano – Conhecer a África não significa apenas visitá-la, mas também se interessar por sua história, acompanhar as notícias sobre o continente e ler os autores africanos. Esse engajamento permite uma reconexão com o eixo perdido durante o período da escravização e colonização. A troca de conhecimentos entre o Brasil e a África é essencial para que os jovens construam uma visão mais ampla e realista sobre suas origens.

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Assista o seminário na íntegra:  


Comunicação Institucional - FE/Unicamp e Jornal da Unicamp
Entrevista e redação: Erika Blaudt
Imagens: Lúcio Carmago  e Antoninho Perri (SEC-Unicamp)