Uso consciente de celulares nas escolas: especialistas propõem equilíbrio entre tecnologia e aprendizado

Uso de celulares nas escolas: Estudantes encostados numa parede, lado a lado, com a cabeça baixa utilizando celulares.

A questão do uso de celulares nas escolas tem ganhado destaque nos debates educacionais, especialmente com a sanção da Lei 15.100/25, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no último dia 14, que regulamenta o uso desses dispositivos em ambiente escolar. Essa medida surge como uma tentativa de equilibrar a convivência social e o processo de aprendizado, afirmam as renomadas especialistas em educação da Faculdade de Educação da Unicamp: a Profa. Dra. Telma Pileggi Vinha (pedagoga), Profa. Dra. Ângela Fátima Soligo (psicóloga escolar), Profa. Dra. Selma Borghi Venco (socióloga).

A nova legislação regulamenta o uso de celulares e dispositivos eletrônicos portáteis por alunos em escolas públicas e privadas, abrangendo a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, inclusive durante os intervalos e recreios. Além disso, a regulação do uso de celulares nas escolas também está relacionada ao vício em tecnologia nos jovens, o que pode prejudicar a concentração, a interação entre colegas e o engajamento em atividades escolares, ressaltam as especialistas. A medida busca promover um ambiente mais propício à aprendizagem e fortalecer a convivência social nas instituições de ensino, consideram as especialistas.

As pesquisadoras concordam que o uso indiscriminado de celulares facilita distrações, como acesso a redes sociais e jogos, prejudica a aprendizagem e a interação social a partir da convivência real. Paralelamente, defendem a tecnologia como ferramenta educacional, desde que usada de forma criteriosa e adequada ao contexto escolar e reforçam a importância de promover a socialização e a convivência real entre os alunos.

Regulação consciente para melhorar o ambiente escolar

A Profa. Dra. Ângela Soligo, que possui experiência em psicologia escolar e educacional há mais de 45 anos, docente colaboradora do Departamento de Psicologia Educacional (DEPE), membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Diferenças e Subjetividades em Educação: estudos surdos, do racismo, gênero e infância (DiS) da FE e do Grupo de Trabalho (GT) do Ministério da Educação (MEC), defende a regulamentação do uso de celulares nas escolas com o objetivo de melhorar o ambiente de aprendizado e a convivência escolar. 

Fotografia frontal do rosto da Profa. Angela Soligo. Mulher branca idosa, cabelos brancos bem curtos, rosto retangular, olhos azuis, boca fina, veste blusa azul clara, colar de contas e brincos. Ao fundo, parede branca com quadros ilustrados coloridos.
Profa. Dra. Ângela Soligo (Fonte: arquivo pessoal).

Segundo ela, a nova lei não visa proibir o celular, mas sim regulamentar o seu uso, evitando tanto o proibicionismo extremo quanto o permissivismo irrestrito que predomina atualmente. “O uso indiscriminado de celulares interfere negativamente nos processos de aprendizagem e nas relações sociais, prejudicando a concentração, a atenção e a interação entre alunos e professores”, ressaltou.

Embora o celular seja uma realidade e uma ferramenta de comunicação, não cabe em todos os momentos dentro da escola, reiteram as doutoras. A proibição de celulares nas escolas precisa ser acompanhada por aulas mais conectadas à cultura, interesses e necessidades dos jovens. Pode-se empregar metodologias ativas e as tecnologias de forma pedagógica contribuindo para promover maior motivação e uma aprendizagem mais significativa. "Muitas vezes, os alunos recorrem ao celular por falta de estímulo, por desinteresse ou tédio ao se depararem com aulas excessivamente expositivas, exercícios estéreis e atividades pouco desafiadoras”, analisa a pesquisadora Telma.

Cyberbullying e convivência escolar

Além disso, outra questão trazida ao debate é que o uso do aparelho na escola pode incentivar o cyberbullying pelos alunos usando os celulares para postagens de situações vexatórias ou provocações que repercutem  dentro e fora da escola. Estudo da TIC Educação do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), mostra que houve um aumento do cyberbullying, de 22% para 34%, de 2021 para 2022, no Brasil, e que quase metade dos professores relataram “ajuda a estudantes por uso excessivo de tecnologias digitais". A regulamentação ajudará a minimizar esse tipo de problema dentro do ambiente escolar, aponta a psicóloga educacional Ângela.

Fotografia frontal do rosto da Profa. Telma Vinha. Mulher branca, cabelos loiros lisos abaixo dos ombros, rosto oval, olhos pequenos, sorridente, veste blusa preta. Ao fundo estante com livros e janela branca.
Profa. Dra. Tema Vinha (Fonte: arquivo pessoal)

 

A pesquisadora Telma, com seus estudos e experiências relacionadas à convivência e educação, incluindo os conflitos e violências também no universo digital, compartilhou suas análises sobre os desafios e as possibilidades trazidos por essa medida. Telma destacou que, embora a regulamentação possa reduzir situações como o uso imediato de celulares para registrar e divulgar conteúdos ofensivos durante as aulas, o problema da violência digital transcende o ambiente escolar. “No cyberbullying, por exemplo, basta uma única postagem para gerar um impacto que pode durar para sempre. Ao contrário do bullying presencial, que geralmente termina ao sair da escola, o ambiente digital não oferece um escape”, explorou.

Ainda segundo a especialista, a exclusão dos celulares não pode ser vista como solução para problemas de convivência on-line, pois a violência digital transcende o ambiente educacional. “Proibir o celular na escola não educa o estudante sobre comportamento ético no ambiente digital, riscos e formas de manipulação, impacto de suas ações on-line ou sobre a convivência respeitosa, o que deve ser muito debatido”, completou a Professora Telma.

Educação para a mídia: um conteúdo essencial

Nesse sentido, a pesquisadora destaca a importância de incluir temas como convivência digital e cidadania no currículo escolar. “Precisamos ensinar os jovens a usar a tecnologia de forma ética e responsável. É essencial discutir o que é público e privado, os impactos das pegadas digitais e como lidar com discursos de ódio ou grupos extremistas”, explicou a professora Telma.

Elas argumentaram que o problema não está na existência de uma regulamentação, mas na falta de uma abordagem educativa que complemente a medida. “A regulamentação é uma oportunidade para abrir diálogos com os alunos sobre o uso da tecnologia e criar espaços de reflexão. Além disso, tais questões precisam ser  trabalhadas de forma transversal, mas também curricular e contínua na escola", reforçou a professora Telma.

 

A dimensão institucional e o protagonismo juvenil

Telma também ressaltou a importância de envolver os alunos no processo de criação de regras e reflexões sobre o uso da tecnologia, coadunando, assim, com a Profa. Selma Venco. “As escolas podem formar grupos de alunos de diferentes séries para trabalhar juntos em projetos que abordem temas como ética digital, cuidados on-line e até eventos educativos”, concordaram.

Essa abordagem, segundo elas, amplia o impacto da regulamentação para além da sala de aula e incentiva uma cultura de cuidado mútuo e responsabilidade coletiva. “Quando os jovens participam ativamente dessas discussões, eles se tornam protagonistas no uso consciente da tecnologia, algo que nenhuma proibição isolada pode alcançar", pontuou a pesquisadora Telma.

Desigualdade, exaustão docente e liberdade didática

Por sua vez, a Profa. Selma enfatizou que o princípio no sistema de ensino deve ser a aprendizagem e não a tecnologia em si. Para ela, a escola deve utilizar ferramentas que sirvam ao processo educativo, promovendo o desenvolvimento crítico dos estudantes. Ela destacou, inicialmente, a questão da desigualdade no acesso à tecnologia. Durante a pandemia, essa realidade se tornou ainda mais evidente, já que muitos alunos de classes menos favorecidas não possuíam recursos tecnológicos adequados para acompanhar as atividades remotas. A docente também analisa a regulamentação como positiva, pois contribui para reduzir a dependência excessiva das telas e os impactos negativos no convívio social. “É durante o intervalo que acontecem os relacionamentos, e com o celular, a interação entre os alunos acaba prejudicada. Os professores têm relatado que está cada vez mais difícil trabalhar com as turmas. Em uma análise qualitativa, observei muitas queixas sobre isso. Limitar o uso de celulares em sala de aula pode ajudar nesse sentido”, afirmou.

Fotografia frontal da Profa. Selma Venco. Mulher branca, cabelos curtos brancos, rosto redondo, bochechas arredondadas, usa óculos de grau de aro redondo preto, batom vermelho, blusa cinza-escuro, pulseiras pretas. Está com a mão direita posicionada no queixo, enquanto sorri. Ao fundo corredor com paredes brancas.
Profa. Dra. Selma Venco (Fonte: arquivo pessoal).

No entanto, ela ponderou que a tecnologia deve ser usada como aliada do processo educacional, desde que com equilíbrio e defende a liberdade didática, argumentando que a obrigatoriedade no uso de determinados aplicativos e plataformas compromete tanto a aprendizagem dos alunos quanto a liberdade de cátedra dos próprios professores. “Defendo que o professor tenha autonomia para decidir quais recursos pedagógicos utilizar e em que momento. Atualmente, há uma imposição exagerada do uso de tecnologias, o que coloca a tecnologia à frente do professor, quando deveria ser o contrário”, avaliou.

Exemplos práticos e discussões internacionais

A Profa. Selma relembrou exemplos de iniciativas internacionais e nacionais para ilustrar como a regulamentação pode ser implementada de maneira eficaz. “No Japão, algumas escolas adotam suportes para que os alunos deixem os celulares nas entradas das instituições. No Brasil, por exemplo, a implementação da legislação restringindo o uso de celulares nas instituições de ensino já ocorre no Rio de Janeiro há um ano e, em São Paulo, pouco antes da lei”, comentou.

Ela alertou que a integração da tecnologia na educação precisa ser repensada. “Devemos discutir o lugar da tecnologia, não somos contra ela, mas precisamos refletir sobre como está sendo inserida em nossas vidas e nas escolas. A educação baseada apenas em aplicativos não proporciona o pensamento reflexivo. Antes, os professores se reuniam para discutir projetos e aulas. Hoje, essas reuniões foram substituídas por palestras de institutos privados que, de fato, não contribuem para enriquecer o debate, mas sim para esvaziá-lo”, reiterou.

Um futuro mais equilibrado para a educação

As pesquisadoras concordam que o debate sobre o uso de celulares nas escolas deve ir além da simples proibição. Elas reforçam a importância de se promover um ambiente que priorize o aprendizado e a socialização, sem abrir mão da tecnologia, mas utilizando-a de forma crítica e responsável.

“Não somos contra a tecnologia, mas a forma como ela está sendo integrada à educação precisa ser questionada. Se não houver uma abordagem crítica, comprometemos o trabalho docente e a formação de gerações futuras”, concluiu Selma.

Ângela também reforçou que a regulamentação permitirá um ambiente mais propício ao aprendizado, garantindo que o uso de celulares, quando necessário, ocorra com justificativa pedagógica pertinente. E ajustou: “com a medida, criaremos condições melhores para que os alunos se concentrem, convivam e aprendam, preservando o papel do professor como mediador do conhecimento”.

Em suma, todas as especialistas consideram que a regulamentação do uso de celulares nas escolas pode trazer benefícios, mas deve ser acompanhada de um esforço educativo estruturado. Elas defendem que a tecnologia seja usada como ferramenta de aprendizado e cidadania, e não como um elemento de exclusão. “É essencial que as escolas aproveitem essa oportunidade para promover discussões significativas, desenvolvendo currículos que preparem os jovens para lidar com os desafios do mundo digital”, finalizou a pesquisadora Telma Vinha.


Comunicação Institucional - FE/Unicamp
Redação e entrevistas: Erika Blaudt
Revisão: Giovanna Romaro
Imagens: Canva / arquivo pessoal