tmarin | Atualizado em 11/12/2020 - 07:58 Notícia

Professora da Unicamp responde a desembargadora do Rio que debochou sobre educadora com síndrome de Down

A professora da FE Maria Teresa Eglér Mantoan, uma das maiores especialistas em inclusão escolar no país, publicou carta em resposta aos comentários da desembargadora carioca Marília de Castro Neves. Em postagem em sua conta pessoal no Facebook, a magistrada critica em tom de deboche o fato de o Brasil ser o primeiro país a ter uma professora com síndrome de Down. “O que será que essa professora ensina a quem???? Esperem um momento que eu fui ali me matar e já volto, tá?”, diz trecho da mensagem. Também foi ela que divulgou recentemente notícias falsas sobre a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes.

A professora a quem a desembargadora se refere é Débora Seabra, que atua como professora assistente em escola de Natal e já soma 12 anos de carreira na educação. Em 2014, ela foi convidada para falar sobre o tema da inclusão em reunião da Organização das Nações Unidas (ONU) e, em 2015, recebeu o Prêmio Darcy Ribeiro de Educação, concecido anualmente pela Câmara dos Deputados a personalidades ou entidades que se destacam na defesa e promoção da educação no Brasil. Débora também rebateu os comentários.

Leia abaixo a carta-resposta de Maria Teresa Mantoan.
 

Senhora Marília de Castro Neves,

Tomamos conhecimento de seu comentário sobre uma  professora brasileira com síndrome de Down - no qual a senhora se pergunta: o que será que essa professora ensina e a quem?

Antes de fazê-lo, teria sido melhor consultar um profissional da área da educação, alinhado ao que hoje se entende sobre as questões levantadas em seu desastroso comentário.

Essa consulta prévia, poderia ter evitado a exposição pública de seu desconhecimento e da inadequação de suas questões, carregadas de preconceitos - nos sentidos usual e literal - conceitos inacabados, incompletos.

Profissionais de destaque da magistratura e de outras áreas do conhecimento, brasileiros e estrangeiros, que compõem conselhos, comissões nacionais e internacionais de educação e de direitos humanos, felizmente não pactuam de seu posicionamento. A referida professora recebeu o Prêmio Darcy Ribeiro de Educação concedido por um grupo seleto de educadores e homens públicos, que reconheceram seu papel, na história da nossa educação. Seu perfil profissional é consentâneo ao do professor de nossos tempos. Trata-se de uma profissional que pratica com seus alunos a hospitalidade incondicional ao acesso, permanência e participação de todos nas suas aulas. De fato, o bom professor, nos dias atuais, é aquele que ensina acolhendo a todos nas suas diferenças, sem aprisioná-los em padrões e modelos arbitrários, que conduzem à discriminação e aos casos de exclusão das turmas escolares. Essa professora tem o dom de ensinar. Transforma suas aulas em contos, histórias que reúne em livros e que estão publicadas com o reconhecimento de escritores como João Ubaldo Ribeiro e outros mais. Suas metáforas apoiam adultos, jovens e crianças na compreensão da inclusão, tema de fundamental importância em nossos dias e que ela trata com humor, lucidez, propriedade.

Voltando às questões que a senhora formulou em seu desastroso comentário, percebi que elas testemunham o desconhecimento de uma questão de fundo, quando se trata de educar, de entender e promover pessoas: somos seres unívocos, que se multiplicam e se diferenciam, ilimitadamente. Não cabemos em modelos de professor, de aluno, de pais, mães, homens, mulheres... Estabelecidos arbitrariamente. Não estamos por inteiro em quaisquer categorias em que queiram nos aprisionar. Somos sempre mais do que achamos e que os outros julgam que somos.

As referidas questões carecem também do que afirmou Deleuze, um  grande filósofo francês contemporâneo: quem ensina é aquele que disponibiliza signos e estes podem ser palavras, imagens, sabores, odores, enfim, tudo o que, se afetar alguém, poderá fazer dele um aprendiz. Certamente, tudo isso acontece nas aulas de Débora e esta é uma boa lição para a senhora, para mim e para todos nós. 

Maria Teresa Eglér Mantoan
Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP/SP