Ver todas as publicações
Giulia Maria Bumba, Isabela Mallis Martinho de Araujo, Patricia Machado Jardim | Atualizado em 05/10/2021 - 10:22 FE Publica

Entre paus e pedras: os desafios de pesquisar sobre educação domiciliar

Quem nunca formou uma opinião sobre determinado assunto a partir do que ouviu de terceiros, que jogue a primeira pedra. Ninguém está isento de construir opiniões baseadas no que ouve e o que nos difere uns dos outros é o modo no qual lidamos com tais informações. Segundo Fiorin, “O enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, não está presente no seu, por isso todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado pelo discurso alheio” (2006, p. 22).

O grande problema de formarmos opiniões baseadas no que ouvimos de terceiros é que, muitas vezes, essas pessoas podem ter uma visão superficial sobre determinada temática. Bell Hooks (2018), em seu livro “O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras”, levanta esse questionamento, uma vez que a autora percebeu ao longo da sua carreira que, grande parte dos homens com uma opinião sobre o movimento feminista, nunca haviam escutado ou lido livros de especialistas, deste modo construindo opiniões equivocadas sobre o feminismo.

Assim como no movimento feminista, o homeschooling (ou educação domiciliar) acaba encarando situações semelhantes, em que as pessoas possuem uma opinião estabelecida sobre o assunto, sem ao menos se aprofundar minimamente sobre ele. Portanto, o objetivo desse texto é refletir sobre algumas generalizações mais recorrentes, que às vezes atrapalham o debate sobre homeschooling dentro da academia e acabam menosprezando a importância da pesquisa científica sobre o assunto.

Ao iniciar um debate sobre a Educação Domiciliar, usualmente o primeiro argumento que surge no senso comum é: “Mas e a socialização das crianças? Como é que fica?”. A socialização proposta pelo homeschooling, geralmente, acontece por meio de atividades extracurriculares, das próprias propostas de aprendizagens proporcionadas pelas famílias ou mesmo na interação com os “grupos de apoio” formados pelos defensores da modalidade, como aponta a literatura nacional e internacional (Cf. FARIA; BARBOSA, 2019; RAY, 2003). Trata-se, pois, de uma socialização seletiva, escolhida pelos pais, sem sombra de dúvida! Por outro lado, no caso do Brasil, questiona-se se essas mesmas crianças, pertencentes a famílias de determinada classe social, já não estariam em uma escola privada (de elite e confessional?), socializando entre “iguais”, em nome de uma “liberdade educacional” permitida pela lei àqueles que têm condições de fazer escolhas.

Se analisarmos a educação do ponto de vista constitucional, uma das premissas é seu preparo para o exercício da cidadania, como consta no Art. 205 da Constituição Federal de 1988. Assim, outro questionamento é se a educação domiciliar prepara para o exercício da cidadania, o que exige que alguns pontos sejam considerados e aprofundados. Entre eles, destacamos: a) o que as nossas escolas (públicas e privadas) estão fazendo para o cumprimento desse princípio constitucional?; b) estaria o homeschooling contribuindo para uma redefinição do conceito de formação para cidadania, como provoca Arai (1999)?. Aqui, à semelhança do debate sobre a socialização, vemos que o assunto é complexo e as pesquisas com crianças e adultos homeschoolers apresentam que, por um lado, as horas vivenciadas fora da escola e com possibilidade de aprendizagens em diferentes contextos e espaços públicos, podem permitir aos grupos maior envolvimento na comunidade, atuação em trabalhos voluntários, entre outros (Cf. VAN PELT et al., 2009; BARBOSA, 2013).

Não podemos, portanto, focar apenas nesses aspectos do debate em torno da educação domiciliar, ainda mais sem aprofundamento, dado que muitas podem ser as implicações para a educação a partir da regulamentação da prática no Brasil. Tal regulamentação vem sendo estudada nas últimas décadas por pesquisadores brasileiros, sob diferentes enfoques: legais e históricos; econômicos e ideológicos; mercadológicos; referentes ao direito comparado; teórico-pedagógicos; motivação de escolhas; entre outros (RIBEIRO, 2019: p. 2). Assim, é possível notar que a discussão em torno do tema é repleta de minúcias e vai muito além do ataque contra a suposta falta de socialização e formação para a cidadania. Ela envolve, no Brasil, um debate profundo e honesto sobre: o papel do Estado e da família na educação; os limites da liberdade de escolha educacional e a que parcelas da população se destina o “direito de escolher”; os princípios do neoliberalismo como fonte para a recusa da ação do Estado quanto à compulsoriedade da matrícula escolar e para a consequente privatização da educação; entre outros desafios complexos que podem ser apresentados para a garantia do direito à educação de todas as crianças, se a prática for regulamentada no país.

No que concerne ao aspecto legal, alguns estudiosos apontam que a educação domiciliar representa uma recusa à matrícula compulsória presente no art. 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por outro lado, os defensores da prática alegam que o Art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos garante aos pais a prioridade de escolher o gênero de educação a ser dada aos seus filhos. Os estudos relacionados aos aspectos ideológicos e econômicos da educação domiciliar, revelam que ela é originária de posições anti estatistas, “[...] que passam por anarquistas, liberais individualistas e posições religiosas fundamentalistas, entre outras.” (OLIVEIRA; BARBOSA, 2017: p. 194).

Posto isso, é notável a necessidade de ampliação do debate relacionado à regulamentação da educação domiciliar no país, uma vez que esta afeta diretamente o direito à educação e os possíveis desafios para a educação pública brasileira. Entretanto, para formular essa discussão, um dos desafios tem sido a pesquisa acadêmica sobre a temática.

Quando somos questionadas sobre o tema de nossas pesquisas e respondemos que é “educação domiciliar” ou “homeschooling”, já esperamos ser, em algum momento da conversa (geralmente no início) questionadas: “mas, afinal, você é contra ou a favor do homeschooling?”. Apesar de termos nossos posicionamentos políticos e pessoais, que impactam naquilo que pesquisamos, é importante destacar que a discussão no âmbito científico vai além do ato de antagonizar, embora ele esteja presente. Um dos motivos do alvoroço causado quando trazemos o tema como objeto de pesquisa está relacionado ao fato de que, principalmente no Brasil, a educação domiciliar tem se apresentado, nas últimas décadas, associada ao conservadorismo e a figuras públicas como o próprio presidente Bolsonaro e a ministra Damares que, ao ocupar cargos de poder, apresentam como uma de suas pautas a regulamentação do homeschooling no país.

Mesmo que tal associação entre os temas atualmente proceda, olhar apenas para esse aspecto e generalizar um movimento que historicamente tem apresentado inúmeras facetas e motivações, acaba por abrir espaço para a desvalorização de qualquer discurso de oposição ao homeschooling, mesmo quando derivado de falas “vindas da universidade”. Não é possível culpabilizar totalmente a tendência de trivializar o tema pela dificuldade de diálogo, já que é recorrente no repertório dos homeschoolers o ataque contra as escolas e universidades públicas que, por sua vez, têm se posicionado com base em generalizações e argumentos que acabam por serem descredibilizados diante do próprio resultado de pesquisas acadêmicas já realizadas, como mencionado. Assim, acaba-se criando (ou alimentando um já existente) cenário de polarização, em que os diferentes grupos não dialogam e falam apenas “para os seus”... Olhando por outro lado, o interesse frequente pela temática da educação domiciliar é notório! O tema vem sendo amplamente divulgado pela mídia, sobretudo após análise e julgamento do STF sobre a prática no Brasil, e também há um crescimento expressivo de grupos sobre o tema nas redes sociais; o que contrasta com a pouca produção acadêmica disponível (SANTOS, 2019).

Assim, percebe-se a necessidade de se ampliar as pesquisas acadêmicas sobre esse assunto, principalmente se considerarmos que, de alguma forma, ele pode de fato ameaçar valores democráticos. Diante da constatação de “que a falta de popularização da ciência abre espaço para oportunismo político e religioso” (TORRES, 2006: p. 73), e do interesse da sociedade pelo tema, é preciso ainda investir na ampla divulgação dos resultados das pesquisas acadêmicas existentes, o que consideramos que pode ser feita por meio de palestras, rodas de conversa, publicação de textos em blogs e redes sociais, exposição de pôsteres em eventos abertos para a população no geral, entre outros.

Dessa maneira, defendemos que as pedras sejam atiradas nos argumentos e inimigos certos! Se a intenção é construir uma oposição a algo que te causa inquietude, esteja aberto para aprender mais sobre ele e de forma aprofundada. Canalize sua revolta para se apropriar do tema de forma que você consiga rebater com propriedade. Atacar ou esquivar-se de pesquisas acadêmicas sobre a educação domiciliar é uma forma equivocada de agir, uma vez que elas contribuem para gerar uma base concreta de argumentos para a construção do debate. Por isso, que tal juntarmos nossas pedras para construirmos barreiras em defesa da escola pública? Convidamos para que visitem o site que reúne estudos e pesquisas sobre educação domiciliar e desescolarização, que está sendo elaborado pelo grupo que investiga a temática na FE/Unicamp e em breve será disponibilizado e, assim, nos auxiliem no processo de análise de crítica sobre o movimento do homeschooling no Brasil.

Giulia Maria Bumba

Isabela Mallis Martinho de Araujo

Patricia Machado Jardim

Alunas da graduação em pedagogia da Faculdade de Educação da UNICAMP, integrantes do Laboratório de Políticas Públicas e Planejamento Educacional (LaPPLane), bolsistas de Iniciação Científica e participantes da pesquisa “Análise das propostas de regulamentação do Homeschooling no Brasil: contribuições das experiências dos Estados Unidos e Espanha”, financiada pelo CNPq (Processo 439037/2018-2) e coordenada pela profª Luciane Muniz. R. Barbosa.

 

Referências

 

ALBERTO TOSTES, Raimundo (2006). A importância da divulgação científica. Revista Acadêmica Ciência Animal, Curitiba, vol. 4, n. 4, p. 73-74. ISSN 2596-2868. Disponível em: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/cienciaanimal/article/view/9540/9153>. Acesso em: 09 abr. 2021.

ARAI, Bruce (1999). Homeschooling and the Redefinition of Citizenship. Education Policy Analysis Archives, v. 7, ed. 27, 6 set.. DOI: https://doi.org/10.14507/epaa.v7n27.1999.

BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro (2013). Ensino em casa no Brasil: um desafio à escola?. 2013. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo -SP.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil – 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996. BRASIL. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm

BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

CECCHETTI, Elcio; TEDESCO, Anderson Luiz (2020). Educação básica em "xeque": homeschooling e fundamentalismo religioso em tempos de neoconservadorismo. Práxis Educativa, Ponta Grossa, vol. 15, p. 1-17. Disponível em: <https://revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/14816>. Acesso em: 9 abr. 2021.

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos

FARIA, B. de; BARBOSA, L. Educação domiciliar no Brasil e grupos de apoio: resposta à “falta de socialização” fora da escola?. Revista dos Trabalhos de Iniciação Científica da UNICAMP, Campinas, SP, n. 27, p. 1–1, 2019.

FIORIN, José Luiz de (2006). Introdução ao pensamento de Bakhtin.2°ed. São Paulo: Ática.

HOOKS, Bell (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 1° ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos

OLIVEIRA, Romualdo Luiz Portela de; BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro (2017). O neoliberalismo como um dos fundamentos da educação domiciliar. Pro-Posições [online], vol.28, n.2, p.193-212. ISSN 1980-6248. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2016-0097.

RAY, B. D (2004). Homeschooling grows up. National Home Education Research Institute. Disponível em: <https://hslda.org/docs/librariesprovider2/public/homeschooling-grows-up… > Acesso em: 05 de abril de 2021.

RIBEIRO, Adalberto Carvalho (2020). Homeschooling e controvérsias: da identidade à pluralidade - o drama da socialização. Práxis Educativa, Ponta Grossa, vol. 15, p. 1-22. Disponível em: <https://revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/14775/…;

SANTOS, Aline Lyra (2019). Educação domiciliar ou “lugar de criança é na escola"?: uma análise sobre a proposta de homeschooling no Brasil. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em:<https://ppge.educacao.ufrj.br/dissertacoes2019/dALINE%20LYRA%20DOS%20SANTOS.pdf> . Acesso em: 9 abr. 2021.

VAN PELT, D. A. N., ALLISON, P. A., ALLISON, D. J (2009). Fifteen Years Later: Home-Educated Canadian Adults. Canadian Centre for Home Education