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M. Inês Petrucci-Rosa | Atualizado em 27/04/2023 - 15:24 FE Publica

MAIS UM APONTAMENTO CONTRA O NOVO ENSINO MÉDIO

 

Essa escrita fez parte da minha participação na mesa redonda Novo Ensino Médio: propostas e tensões realizada no Salão Nobre da FE em 24 de abril passado, com a participação de professores em serviço na escola básica, professores universitários, estudantes de licenciatura e estudantes secundaristas. O evento foi organizado pelas coordenações institucionais dos programas PIBID e Residência Pedagógica da Unicamp, representadas pelos colegas profa. Eliana Ayoub e prof. Guilherme Toledo Prado.

Tais programas só existem na Universidade, por conta da existência dos cursos de licenciaturas, que no nosso caso, envolvem 15 unidades acadêmicas num leque de mais 21 cursos oferecidos. Todos cursos disciplinares.

O conhecimento escolar (tão fundamentado e definido por um espectro de referências teóricas no campo acadêmico da Educação) é uma das dimensões das práticas curriculares escolares. As disciplinas escolares no ensino secundário do nosso país surgiram com a reforma Francisco Campos em 1931 e resistiu (com esse status até as políticas curriculares para o Ensino Médio do governo Dilma Rousseff..., mas não resistiu com tranquilidade nesse período. 

No meu livro, Ensino Médio e Conhecimento Escolar, procurei estudar a estabilidade das disciplinas escolares nesse segmento de escolarização no período pós redemocratização do país, tendo como marco a promulgação da LDB 9394/1996. O anúncio de interpelações ou provocações ao formato estável da disciplina já vinha sendo evidenciado nesse período. Nesse sentido, aqui não cabe exatamente uma crítica, mas um estado de atenção, pois acredito que nós educadores progressistas não enaltecemos o enclausuramento dos nichos disciplinares. Vários teóricos do campo do currículo já estudaram a força de agentes internos e externos que mexem com tal estabilidade. Mas sem dúvida, acredito que todos, todas e todes nós, aqui presentes, defendemos uma disciplina escolar que seja contextualizada e, que para isso, exercite dinâmicas de integração interdisciplinar. Dessa forma, vivemos todo o período do governo FHC, Lula e Dilma, com o espectro pálido da tal tão desejada integração interdisciplinar, mas ainda com a defesa da  premissa fundante da existência da disciplina escolar de forma íntegra, com suas especificidades, sua linguagem, sua epistemologia, sua função social. Tal espectro pálido de integração pôde ser indiciado nas práticas escolares, nos cursos de licenciaturas, no mercado de livros didáticos entre outras instâncias das políticas curriculares relativas ao Ensino Médio. 

E aqui, recordo, de forma muito direta, das proposições de Michael Young no seu tão conhecido artigo “Para que Servem as Escolas?” de 2007. Quando Young aponta a diferença entre o conhecimento dos poderosos e o conhecimento poderoso, ele atribui à escola um papel e um lugar centrais no empoderamento das futuras gerações. Não se trata aqui de defender, como acusam Young, um conhecimento eurocentrado, branco e masculino, mas sim de privilegiar no ensino escolar todas as formas de conhecimento científico oriundas da pluralidade tecno-científica-cultural do nosso país.  A escola ainda é o lugar onde o letramento científico tecnológico (citando aqui conceito desenvolvido em sua tese, pelo querido e saudoso Wildson Santos, docente da UnB e que, também fez sua formação acadêmica nesta FE) pode ser desenvolvido e praticado, notabilizando-se como preciosa oportunidade de empoderamento para todos os grupos sócio-culturais. 

Nos últimos quatro anos, atravessamos um período sombrio de nossas vidas, seja no âmbito social, seja no âmbito particular. Estivemos sob a égide de um desgoverno genocida, negacionista, corrupto, debochado e despreparado. Se não bastasse esse pesadelo institucional, fomos mundialmente atingidos pela pandemia causada pelo SarsCov-2, propagando a contaminação de 37 milhões de habitantes no Brasil e 700 mil mortes, sendo que boa parte delas poderiam ter sido evitadas. O Brasil foi o país onde mais casos e mortes ocorreram pela Covid-19, ficando apenas atrás da Índia e dos Estados Unidos, lembrando que esse último mesmo sendo desenvolvido, esteve sob o governo do negacionista Donald Trump até janeiro de 2021.

Líderes genocidas e negacionistas não encontram suporte e ressonância em populações letradas cientificamente. Na democracia, as populações ocupam as ruas para protestar e reivindicar condições dignas de vida. Em meados de 2021, a imprensa registrou 509 protestos realizados no Brasil e no exterior, sendo pelo menos 12 capitais estaduais e o distrito Federal, contra o desgoverno Bolsonaro, pela democracia e pela aceleração do programa de vacinação. 

Estrutura e agenciamento em contínua interpelação são parte da democracia como regime e como prática emancipadora. Agenciamentos populares nos levaram, então, ao alívio com os resultados do segundo turno das eleições em outubro passado. 

Onde entram escola, educação e ensino nesse contexto? Mencionando ainda Young, no seu artigo de 2007, ele afirma que as escolas “capacitam ou podem capacitar jovens a adquirir o conhecimento que, para a maioria deles, não pode ser adquirido em casa ou em sua comunidade, e para adultos, em seus locais de trabalho” (p. 1294) Esse conhecimento poderoso fortalece os movimentos democráticos não só no ensino das ciências da natureza, mas também os tão necessários conhecimentos poderosos das ciências humanas, como os da História e os da Sociologia. 

Sim, estou aqui fazendo uma discussão curricular para sustentar a imprescindível bandeira da Democracia. O que o ensino do conhecimento poderoso tem a ver com isso com crimes ambientais, com genocídio durante a pandemia, com negacionismo científico ou ainda com a descolonização dos saberes?

A ideia de reconfigurar as disciplinas escolares no Ensino Médio, como eu já disse, não é uma novidade. Começa no governo neoliberal FHC e segue viva durante o governo trabalhista. A reforma do Ensino Médio, Lei 13.415/2017, é o ápice desse caldeirão de políticas educacionais curriculares recheado de parâmetros, orientações, diretrizes. A emergência das figuras curriculares de competência e habilidades é a evidência límpida do ocaso do conhecimento escolar no horizonte das políticas curriculares do Ensino Médio. Políticas as quais almejam a formação de trabalhadores e trabalhadoras que sejam ecléticos, versáteis e generalistas. Estou aqui fazendo a apologia à mera especialização e cartesianismo?  É evidente que não. O que defendo aqui é a permanência do conhecimento especializado com sua linguagem e sua epistemologia em diálogo com outras linguagens e epistemes e enraizado no contexto social e político mais amplo. Competências e habilidades não garantem o letramento científico tecnológico dos grupos socioculturais diferenciados e plurais do nosso país. 

Há 10 anos atrás, o Projeto de Lei 6840/13 apresentado no Congresso Nacional foi aprovado por Comissão Especial presidida pelo então deputado federal Reginaldo Lopes (por Minas Gerais) do Partido dos Trabalhadores. Tal PL foi o primeiro passo para chegar à promulgação da Lei 13415/2017 no governo Temer, alterando a LDB. Poderíamos inferir que o PL original foi desconfigurado pela lei, sob a pena de Temer? 

Como sabemos, a lei que define o Novo Ensino Médio (NEM) trata de uma base comum e da configuração de itinerários formativos, sob a falácia de que agora os estudantes teriam a opção de escolher o que mais lhes interessa. Ora, é sabido também que em todo o território nacional, há um espectro de condições materiais nas escolas que não permite que essa escolha seja de fato, uma verdade, já que a maioria dos estados não poderão contar com uma totalidade de escolas com estrutura suficiente para abrir um leque de ofertas de itinerários aos jovens. 

Do ponto de vista curricular, o NEM é então regido pela Base Nacional Curricular Comum (BNCC) aprovada pelo Conselho Nacional de Educação, no final de 2018. Na sequência, na direção da implementação do NEM cabe aos Estados com suas Secretarias de Educação formularem seus currículos com base na BNCC (desculpe-me pela redundância).

Vou comentar um pouco aqui, uma realidade que conhecemos que é a das escolas públicas no Estado de São Paulo. Segundo dados do IBGE para o ano de 2021, São Paulo tem cerca de 6,5 mil escolas de Ensino Médio em funcionamento, contando com quase 118 mil professores desse segmento de escolarização e com cerca de 1,6 milhão de estudantes matriculados. 

A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo é uma rede que há 10 anos não realizada concursos para carreira docente e, no novo formato, há ainda um outro problema, que é o fato dos professores disciplinares não conseguirem completar sua carga horária em sua especificidade e serem empurrados a ministrar aulas de disciplinas como Projeto de Vida ou Empreendorismo, por exemplo. Na nossa primeira reunião da Residência Pedagógica AQUI na Unicamp, em janeiro último, uma professora experiente do Ensino Médio reclamou: EU NÃO SEI MAIS PROFESSORA DO QUE EU SOU!!!! A confusa implementação do NEM que desrespeita a especialidade acadêmica docente acaba por afastar muitos do sistema, sendo que milhares de professores desistem de trabalhar nas escolas estaduais paulistas todos os anos.

Recentemente a Folha de São Paulo publicou uma matéria onde havia um levantamento de, ao menos, 1526 disciplinas no Novo Ensino Médio no campo das eletivas, com títulos e conteúdos variados como “O que rola por aí?”, “Educação Financeira – torne-se um milionário”, “RPG- conquistadores de mundo”, “Meu mundo, meu futuro: me ajuda a construir?”, “Quitutes da nossa terra”, “Brigadeiro gourmet”, “Bolo de pote”. 

No currículo paulista, há as aulas semanais de disciplinas escolares na parte comum diminuíram e há um número não previsível de aulas temáticas (que podem conter assuntos científicos ou não) no segmento dos itinerários formativos, chamados de aprofundamentos.

Que propósito democrático para a Educação Científica e Humanista podemos perceber nessa configuração curricular? Professores e professoras do ensino médio público com os quais eu convivo tem relatado níveis extremos de incerteza no ensino do conhecimento escolar do novo Ensino Médio. Não há segurança de pré-requisitos na abordagem dos temas, não há previsibilidade de acesso aos conhecimentos norteados pelos princípios centrais dessa ciência, não há como democratizar o ensino do conhecimento escolar no Novo Ensino Médio. 

Precisamos registrar essas mazelas e esse caos que vem ocorrendo nas escolas públicas com a implementação do NEM com base na sua famigerada BNCC. Sendo assim, precisamos registrar com nossas pesquisas a falência curricular do Ensino Médio, precisamos registrar o alto impacto provocado nos cursos de formação de professores. 

O governo Lula anunciou a suspensão do calendário de implementação, mas o Estado de São Paulo completa essa operação no presente ano. Uma consulta pública encontra-se aberta. Estamos participando? Qual é a disposição governamental para encaminhar a revogação desse Novo Ensino Médio?

Se o lema do atual governo federal é União e Reconstrução, defendo aqui que para concretizar tal assertiva, é preciso proceder a revogação: FORA NOVO ENSINO MÉDIO!!!

 

Referências citadas:

BRASIL, Censo escolar, ano 2021. IBGE. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pesquisa/13/5908

FSP, Escolas estaduais ofertam ao menos 1526 disciplinas no novo ensino médio. Matéria publicada em 17 de março de 2023, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/03/escolas-estaduais-ofertam-ao-menos-1526-disciplinas-no-novo-ensino-medio.shtml

PETRUCCI-ROSA, M.I. Currículo de Ensino Médio e Conhecimento Escolar. Curitiba: Editora CRV, 2018.

Young, M. Para que servem as escolas? Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 101, p. 1287-1302, set./dez. 2007