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Débora Mazza | Atualizado em 15/08/2021 - 15:40 FE Publica

Minhas vivências e experiências diante de quatro representações literárias da pandemia

         Este texto se estrutura em três partes. Na primeira, faço um relato íntimo de vivências e experiências sobre os impactos da pandemia no meu cotidiano e no cotidiano de minha família. Na segunda parte, discorro sobre as principais linhas de força temáticas dos livros minimus, de Alciene Ribeiro, e brevíssimos, de Rauer. Os dois livros dividem um único volume, lançado pela Editora Pangeia em 2020, com o título de minimus & brevíssimos. Na terceira parte, analiso, à luz da vivência descrita na primeira parte e sob perspectiva humanista e sociológica, a representação literária da pandemia nesses dois livros, trazendo também para considerações o livro brazil 2020, volume igualmente dividido por Alciene Ribeiro e Rauer, em que os quatro contos de cada um tratam de alguns impactos no país e no humano com a chegada do Sars-CoV-2 e a letal Covid-19.

Concluí a escrita desses apontamentos em 25 de março de 2021, momento em que o Brasil ultrapassa as trezentas mil mortes pela Covid-19. As dores imersas nesse número imensurável comparecem nos microcontos e nos contos de Alciene Ribeiro e de Rauer.

 

1

 

Há um ano, a reitoria da UNICAMP publicava a primeira resolução que dispunha sobre a suspensão das atividades de ensino presenciais na universidade, para o período de 13/03 a 12/04/2020, no intuito de preservar, na medida do possível, as atividades acadêmicas do 1º semestre de 2020. (GR- 024/2020 de 16/03/2020).

Naquele momento, registrávamos a primeira morte por Coronavírus da Covid-19 no Brasil.

A resolução previa um programa emergencial para os cursos e as disciplinas de graduação e pós-graduação, contando com a migração para atividades de educação mediadas por tecnologias, buscando metodologias e atividades alternativas desenvolvidas de forma não presencial. As atividades presenciais poderiam ser retomadas após o encerramento do período de restrição imposto pela pandemia. Estávamos assustados com as notícias que vinham da China e da Europa central, mas não tínhamos a menor ideia do tempo que esta resolução duraria e nem do tamanho do perigo que nos rondava.

O presidente do Brasil fez um pronunciamento, em rede nacional de televisão, e pediu o fim do isolamento, o retorno à normalidade, acusou a imprensa de espalhar pânico e garantiu que tudo não passava de uma gripezinha (Rede Nacional de Televisão em 24/03/2020).

De lá para cá, as dinâmicas cotidianas e os espaços públicos e privados foram alterados. Muitas instituições, empresas, prestadores de serviço, pequenos comerciantes e trabalhadores autônomos passaram a operar prioritariamente de modo remoto. Nossas casas tiveram que se adaptar rapidamente e os espaços, antes reservados à convivência familiar, se transformaram em sala de aula, gabinete de trabalho individual, área de reuniões coletivas, lugar de orientação, compartimento de grupos de pesquisa, defesas de dissertações e teses, seminários nacionais, congressos internacionais etc.

O ruído da aula remota realizada por meu filho Guilherme colidia com o ruído da aula remota que eu ministrava. O pacote de internet que nos atendia a uma década não aguentou as atividades concomitantes e tivemos que ampliar para 1 G, depois para 2G e ainda para 5G. Seguimos com problemas, contando com interrupções e oscilações.

As demandas do trabalho doméstico produziram um efeito vazado nas obrigações do trabalho profissional: limpar, organizar, lavar, cozinhar, assistir televisão, ler jornal, cuidar do cachorro, regar as plantas, atender o interfone, ignorar o telefone, abastecer a despensa, fazer mercado – tarefas que antes realizávamos quando estávamos “em casa” – passaram a conviver de modo concomitante com as inúmeras e intermináveis atividades de trabalho remotas. A lista de e-mails ficou ainda mais interminável e o check-list de solicitações restou impossível de ser liquidado. Tem uma conta que não fecha e que tem sido entregue no endereço residencial do/a trabalhador/a.

Rapidamente tivemos que aprender a conversar com plataformas digitais, pastas compartilhadas, pacotes de dados e arquivos nas nuvens. Meet, Zoom, Moodle, Facebook, Messenger, WhatsApp, Instagram, Podcast, Lives, Streaming, Youtube, Uber, Waze, Ifood, Rappi, aplicativos bancários etc. invadiram nossos vocabulários e desafios diários. Tivemos que transformar nossas propostas de trabalho presenciais em atividades fragmentadas que ocorrem de modo sincrônico e assíncrono. Os celulares, os computadores, as câmeras e as caixas de som não aquentaram, pifaram e mostraram-se sucateados. Tivemos que comprar equipamentos, trocar baterias, fazer limpeza, pagar manutenção, calcular o ângulo da tela, desenhar o fundo da imagem, enfim, arquitetar nossas casas como se fossem espaços institucionais planejados para eventos de pequeno, médio e grande porte. Isto sem falar nos inúmeros/as trabalhadores/as que permaneceram atuando fisicamente e se expondo e expondo sua rede de afeto ao contágio do Coronavírus da Covid-19.

Relacionamentos afetivos foram rompidos; amigos próximos ficaram distantes, colegas distantes se aproximaram; familiares que pouco se encontravam passaram a ter que conviver durante dias, semanas e meses; doenças antigas se agravaram; doenças novas se manifestaram; novos afetos emergiram, velhos conflitos se dilataram; novas disposições e disputas afloraram. Me lembrei do álbum dos Titãs: “Tudo junto ao mesmo tempo agora”.

Filhos boêmios se tornaram caseiros, filhas independentes voltaram para casa. Enfrentamos na família casos de dengue, cirurgia de cálculo renal, desemprego, subemprego e ausência de perspectivas

Em 13 de março 2021, a reitoria da UNICAMP segue com resoluções de enfrentamento à Covid-19 que dispõem sobre a suspensão das atividades não essenciais nos campi da Unicamp em virtude da piora da pandemia, alta dos casos, internações e mortes, prevenção do contágio, do afastamento social e dos dados que apontam que cerca de 80% da população do estado de São Paulo está na fase vermelha (GR nº 004/2021, de 25/01/2021).

O mundo conta hoje com cerca de 2.800.000 mortes por Coronavírus, sendo quase 550.000 nos USA e 301.000 no Brasil (disponível em https://coronavirus.jhu.edu/map.html, acesso em 25/03/2021).

Nosso presidente perdura dizendo nas mídias:

Chega de frescura e mimimi. Vão ficar chorando até quando? Para onde vai o Brasil se nós pararmos de trabalhar? Os governadores e prefeitos devem repensar a política do fecha tudo pois o povo quer trabalhar. (Em 04/03/2021).

Neste cenário, me chegou às mãos os livros minimus & brevíssimos e brazil 2020, ambos de Alciene Ribeiro e Rauer (2020). Apreciei as artes das capas, observei o desenho das palavras nas páginas e, com um olhar infantil, notei que os livros eram de formato pequeno (pocket book), os textos escritos eram curtos e os espaços em branco eram generosos. Minhas filhas, Ana Clara e Carolina, quando pequenas, classificavam os livros assim: – Mamãe, muito desenho, pouca letrinha ou muita letrinha.

Vamos às linhas de força que identifiquei nestes livros, que reúnem duas vozes distintas, peculiares e ao mesmo tempo universais, de dois escritores nascidos na cidade de Ituiutaba, MG, no Triângulo Mineiro, pertencentes ao mesmo tronco familiar. Para efeito de facilitar a identificação, ao comentar as quatro diferentes vozes que surgem nos dois livros, os microcontos de Alciene são identificados por (Alciene, M&B, p. xxx); os de Rauer, assim: (Rauer, M&B, p. xxx). Os contos de Alciene reunidos no brazil 2020 são identificados do seguinte modo: (Alciene, BR2020, p. xx); e os contos de Rauer, deste modo: (Rauer, BR2020, p. xx).

 

2

 

Iniciei a leitura, um dos meus hobbys prediletos, e fui me dando conta que minimus e brevíssimos me expunham a um gênero literário desconhecido: o microconto. Me indaguei: – Como os ler, como os compreender, como apreciá-los?

Li e reli até começar a localizar os efeitos de sentido e as rotas de fuga. Assim, compartilho, abaixo, algumas das minhas chaves de diálogo com os microescritos; a seguir, dialogo com os contos de Alciene e Rauer.

 

a. Metaliteratura

 

O que vem a ser uma micronarrativa?

 

SÍNTESE

Do maior ao menor conto,

tudo acaba no ponto.

(Alciene, M&B, p. 14).

 

LEITOR PULSANTE

No microconto o sugerido

lateja entrelinhas

e desafia

o leitor

a substantivá-lo.

(Alciene, M&B, p. 15).

 

EM ELIPSE

Oração de sujeito oculto que

insiste em se dizer sem

palavras – eis o microconto.

(Alciene, M&B, p. 23).

 

MICROCONTO

Narrativa.

Cristal-Vivo.

Uma só visada.

Um único golpe.

Nocaute.

(Rauer, M&B, p. 179).

 

MICRONARRAR

poesia

fascinante-assustadora,

 

jogovida ::: literatura,

vapor condensado,

 

lágrima,

 

faísca erótica que sangra

no ralo da noite.

(Rauer, M&B, p. 182).

 

LAPIDAÇÃO

o microconto está

no cerne do fractal,

no âmago da seiva,

no imo intestino

(Rauer, M&B, p. 192).

 

MICROMÍNIMUS

Ei-lo, elipse – do

incognoscível ao

inescrutável.

(Rauer, M&B, p. 195).

 

Há diversos microcontos mais, dos dois autores, na clave da reflexão metaliterária e metapoética. Como gênero que tenta se afirmar como novo, é instigante essa vertente voltada à busca de definições, de encontrar os limites, de alcançar diversas possibilidades expressivas. Nem Alciene nem Rauer se furtam da busca do novo e de enfrentar dificuldades inéditas, resolvendo as situações propostas de modo exemplar.

 

b. Memória

 

Ambos os autores apresentam microcontos que reportam ao passado, a um passado na exemplaridade do faz de conta, ao passado histórico longínquo ou a lembranças próximas. Eis alguns exemplos:

 

À MONTEROSSO

Quando acordou, o dinossauro o espreitava:

– De que toca você saiu, animal erectus?

(Alciene, M&B, p. 13).

 

VERDADE MADRASTA

Cada ruga tem uma história.

(Alciene, M&B, p. 27).

 

O NATAL DE EURÍDICE

– Queria um único presente: sua voz, sua tez, seu ar, seu plexo, você nu e sempre todo em sexo, e não, quanta dor!, desejo ausente.

(Rauer, M&B, p. 222).

 

EPITÁFIO

Sultão, gozei festas, carrões,

consumo, mulheres mil.

Deixo filhos às dezenas,

para que acabem

logo

com o planeta.

(Rauer, M&B, p. 311).

 

Memórias e lembranças, nos microcontos de M&B, compõem um vasto painel, que vai da pequena cidade às metrópoles, da vida íntima aos voos condoreiros.

 

c. Cotidiano

 

Os microcontos sintetizam, no seco, as vicissitudes da vida:

 

DISTRAÍDA

Ela só queria voar,

mas

esqueceu o paraquedas.

(Alciene, M&B, p. 47).

 

SUBIU À CABEÇA

– E daí?... Não posso estacionar o caminhão aqui, por quê? Você sabe com quem está falando?! Tá lá no para-choque:

 

Não sou dono do mundo,

Mas sou filho do dono.

(Alciene, M&B, p. 57).

 

SILICONE

O primeiro amor e o primeiro sutiã a gente nunca esquece... Até a força da gravidade morar no espelho.

(Alciene, M&B, p. 63).

 

FINITUDE

Em prol de mais projetos

do que a expectativa de vida,

não tenho tempo

para passatempo.

 

Ponderemos:

a perenidade temporal

é ponto pacifico

– não passa tempo,

passamos nós.

(Alciene, M&B, p. 161).

 

Caro autor,

Se o nome é trabalho e o sobrenome hora-extra, já passou do momento de o trancafiarmos no Pinel.

(Rauer, M&B, p. 189).

 

O trabalho exaustivo, a finitude das pequenas aspirações, a vida miúda ou a pose intimidadora – o retrato do cotidiano em pequenos e saborosos flagrantes está nos microcontos de Alciene e Rauer.

 

d. Hedonismo e eroticidade

 

Os microcontos exalam – e também ironizam – a efemeridade do desejo e o gozo da vida. Vejamos alguns exemplos:

 

MITOLOGIA

Da cinza renascida,

a fênix, maliciosa:

– Você e o carvão,

hem!...

(Alciene, M&B, p. 75).

 

FRUTO PROIBIDO

O fardo fora leve.  Cansou de

descansar eternamente,  e

cultiva maças no Paraíso.

(Alciene, M&B, p. 153).

 

AO ALTAR, DECLARO

Extático talho:

doce ara,

em que se declara,

à cona,

o caralho.

(Rauer, M&B, p. 203).

 

CANTATA

vamos celebrar

por todos os meios.

pulsar todas as veias.

excitar todos os poros.

amar

alma, corpo,

coração.

beijar, explodir

em estr-

elas.

(Rauer, M&B, p. 204).

 

MEU MEL

Fêmea em mel,

loucura que me captura,

por que viras fel?

(Rauer, M&B, p. 205).

 

PREFERÊNCIAS

– Coito?

– Primícias...

– Orgasmo?

– Carícias!

– Que prefere?

– Ah!... bis-coitos.

(Rauer, M&B, p. 213).

 

A sexualidade, o prazer, o canto e o hino de louvor ao corpo, certo ludismo erótico permeiam diversas dessas micronarrativas.

 

d. Dores, do amor e das relações interpessoais

 

Os microcontos de Alciene Ribeiro e Rauer registram, em elipse, as dores do amor e os limites das relações humanas. Vejamos alguns exemplos.

 

SATURAÇÃO

Só mais uma gota para o cálice transbordar.

 

Calçou os sapatos e girou a chave duas vezes.

(Alciene, M&B, p. 28).

 

A VIDA IMITA A ARTE

Todo conto, fábula, novela e romance, por mais caliente, chega ao fim.

(Alciene, M&B, p. 29).

 

COLAGEM

Amou, e não sabia.

Odiou, e soube

em todos os poros e feridas.

Refez o caminho

à procura dos pedaços

perdidos.

(Alciene, M&B, p. 131).

 

A PRAGA DE LILITH

Sem Eva, Adão fenece.

(Rauer, M&B, p. 225).

 

DIVÓRCIO

- eu não devia ter olhado para trás, não devia

- agora é tarde, ‘miga

(Rauer, M&B, p. 306).

 

O amor surge como dor, como exaltação, como preocupação, como encontro que antecede o desencontro, como infinitude na finitude. Nas elipses, a vida a dois é possibilidade do impossível, é o desejo que aspira ao imponderável.

 

e. Dores, do amor e das relações interpessoais

 

Os microcontos descrevem, de modo conciso, a força criadora do tempo presente.

 

SIM SIM, NÃO NÃO

Mais de meio século de sim, depois, permito-me algum não.

E vou bem, obrigada. Em paz, com manias que não se explicam: são porque são... ou deveriam ser. Senão, por estrambóticas, não ser.

Fico com elas... e filosofo.

Vã filosofia?

(Alciene, M&B, p. 26).

 

CAFÉ

– Fiquei de confirmar hoje com você.

– Hoje?

– Para amanhã à tarde, se você não tiver impedimentos médicos ou domésticos.

– No café?...

– Combinado, então?

– Se der para mim, irei com pra-zer.

(Rauer, M&B, p. 220).

 

POALHA ::: RÉSTEA

Nenê à sombra

estica a mão

pega o sol.

(Rauer, M&B, p. 285).

 

Como diria Drummond (2008), Alciene Ribeiro e Rauer cantam a vida presente, os homens presentes, o tempo presente – e o fazem no solo úmido e fértil das vivências e experiências que subjazem e reverberam a cada nova micronarrativa.

 

f. Distopias

 

Os microcontos desenham distopias quando sugerem que o futuro não está garantido e pode ser pior do que o presente.

 

O VERBO DEGREDADO

Barbeava-se quando ouviu – Atenção, acaba de ser deflagrada a Terceira Guerra Mundial! – e nem percebeu o espelho desintegrado.

(Alciene, M&B, p. 17).

 

VIA SATÉLITE

Dinossauro no Cretáceo, pouco antes da extinção, a barata pós-guerra nuclear do III Milênio:

– Comida racionada aí também?

(Alciene, M&B, p. 20).

 

ERA ATÔMICA

Saiu do banho – e nada mais havia.

(Alciene, M&B, p. 21).

 

GUERRA NUCLEAR

Saltou de paraquedas e caiu em uma floresta de cogumelos.

(Alciene, M&B, p. 22).

 

NO ASILO

Em duas lágrimas o hoje se impôs. Virado para a parede, o velho dobrou-se em existir fetal – e começou tudo de novo.

(Alciene, M&B, p. 43).

 

EXPLODIU

Esperançoso saudoso exausto,

o soldado voltava da guerra

quando pisou no explosivo.

(Rauer, M&B, p. 251).

 

As distopias como que anunciam outras possibilidades, renovadoras. É o que vemos na sequência.

 

g. Sonhos e utopias

 

Os minimus e os brevíssimos também apontam utopias e insinuam um futuro melhor que pode acontecer sempre que determinadas condições se realizem.

 

HUMANIDADE

Penso, logo, não desisto: mere-cemos nova chance.

(Alciene, M&B, p. 18).

 

SHAKESPEARIANA

– Ser ou não ser, eis a questão.

– Voce decide, uai!

(Alciene, M&B, p. 33).

 

PANDEMIAS

Seguimos, resilientes – a

vírus, a bactérias e até a

vacuns hidrófobos e a

muares hipomentais.

(Rauer, M&B, p. 312).

 

Merecemos nova chance, nos diz Alciene; para isso, seguimos resilientes, nos afiança Rauer. O humanismo dos dois escritores se plasma em escrita que é moral, ética e política.

 

3

 

Alciene e Rauer – como já evidencia o último microconto citado acima – não se eximem de pautar o cenário trágico da pandemia e do abandono em que se encontra o povo brasileiro diante do descaso do governo atual. E se o fazem no volume minimus & brevíssimos em algumas narrativas, está no ethos de todos os contos do brazil 2020, volume banhado pelo clima de medo, de desespero, de solidão decorrentes da presença do vírus, das muitas pseudoquarentenas, do terror com a necropolítica exercendo seu ímpeto de terra-arrasada, de ausência de compaixão, de não valorizar a vida e de nutrir amor à morte.

Eis um libelo antiautoritário que satiriza o exercício dos pequenos autoritarismos cotidianos em uma sociedade ditatorial:

 

[...]

– Não leram o edital? – o guarda esbraveja. – Peguem nova senha. E só me voltem aqui com a Declaração de Apoio ao Capitão na hipótese de motim a bordo.

– Sem a-a-a De-de-de-claaaração de-de A-a-apoio – esganiça o ordenan-ça, escudado na cabine, – sem a Declaração ninguém so-so-soobe a rampa.

(Alciene, BR2020, p. 6).

 

Da micropolítica de uma distopia autoritária, Alciene segue para a mentalidade coletiva que permite o desvario de mentes pervertidas, nazifascistas:

 

[...]

Do Oiapoque ao Chuí ecoaram choro e ranger de dentes na Pátria Mãe Gentil.

[...]

O luto pandêmico se incrusta na psique coletiva... e o futuro acena do deserto amazônico:

– Aguenta coração!

(Alciene, BR2020, p. 8).

 

A temerosa “psique coletiva” na pandemia tem o mesmo desvio do logos que permite o vírus político do desvario se instalar, replicar e inocular o veneno da doença antidemocrática. Em breves páginas, os contos de Alciene iluminam um país em que o vírus tem forma de corona, mas outros vírus têm formas humanas, usam terno e gravata ou quepe e dragonas.

Por outro lado, os contos do brasil 2020 também nos apresentam personagens atravessados pela solidão, pela violência urbana, pela miséria física e moral e que insistem em expandir a tragédia humana mesmo em meio à tragédia maior da pandemia. Eis um excerto que desvela tal aspecto:

 

[...] Ouço sons distantes de telejornais nos apartamentos vizinhos. Ao que parece, as autoridades determinam maior rigor no isolamento. Ótimo, que aqui me encaverno em definitivo.

Percebi que a reclusão seria ampliada diante dos sinais contraditórios ­– quanto à pandemia – vindos dos governos que nos desgovernam.

[...] sentado no chão em meio ao fluxo apressado e incessante de pernas, os andrajos mal cobrindo o corpo mutilado, lacerado e pustulento, mostro a perna amputada e esmolo; exponho as chagas, os caroços de berne, as feridas sanguíneas, e estendo suplicantes mãos diante de transeuntes insensíveis, alheados, distantes como a lua prometida em noites de amor.

[...] há dezenas de mascarados transitando. Caminham rápidos, evitando os muitos corpos espalhados pelo chão, alguns enrolados em sacos plásticos, outros nus, e eles se misturam aos pontos negros da retina e a outros pontos negros em torno dos corpos.

Os urubus também estão no céu azul. [...]

(Rauer, BR2020, p. 24-29).

 

Publicado em outubro de 2020, o conto de Rauer parece antecipar situação da pandemia que surge agora tragicamente no horizonte do país, com os colapsos sanitário, hospitalar e funerário na ordem do dia de praticamente todos os estados brasileiros.

Sob outro aspecto, os contos políticos do Brazil 2020 nos asseveram a antiguidade dos desgovernos, a agonia ancestral da mãe terra e o destrato histórico com o meio ambiente e com as assim nomeadas “minorias”. Vejamos.

 

[...]

À perplexidade do ontem, o hoje se impõe com idêntica, senão pior crueldade – verso e reverso? [...]

Segue à estupefação o desfile de familiares barbaridades.

Grandes senhores feudais lideram movimentos que minimizam cuidados preventivos a pandemia a grassar na invisibilidade viral. Praga que dizima tanto quanto as genocidas guerras de conquista, ou a Peste Negra a ceifar vidas de meus patrícios.

[...]

Constato pesarosa que a miséria e nenhum apreço ao outro, insiste em constranger criaturas ao vilipendio de si mesmas. [...]

O homem não mudou, tampouco vícios de conduta. Velocidade das notícias, sim, e o conhecimento expandiu.

Redes de boatos – gabinetes disso e daquilo – forja mentiras com as cores de verdade. [...]

A civilização se me afigura em grave estagnar: corruptos e corruptores, assédio moral, culto à beleza e à juventude, em flagrante desrespeito à experiência de longevos sábios.

(Alciene, BR2020, p. 13-16).

 

[...]

O cabelo rastafári do rapaz, longas tranças com apliques amarelos e dreadlooks multicores, espalha-se inerte no asfalto, mancha-se de vermelho – um vermelho úmido, viscoso. [...]

(Rauer, BR2020, p. 22)

 

Contos e microcontos sugerem, por meio da literatura, os inacabamentos e as continuidades que nos movem e nos mobilizam nas lidas cotidianas e no enredo sedutor das múltiplas linguagens.

 

CANSAÇO

Ao descansar,

já prepare a conquista

do próximo Olimpo.

(Rauer, M&B, p. 313).

 

ADIVINHA

O que é, diga-me, o que é:

Que história aqui morre,

Morre agora nesta página,

Sem nunca,

                  ao fim,

                             ser o fim,

Pois de verdade não o é?

(Rauer, M&B, p. 315).

 

Lembra-te, [...] o mal retumba, o bem silencia.

(Alciene, BR2020, p. 10).

 

– Se há amor?

Dimais.

(Rauer, M&B, p.169).

 

A leitura destes textos me remeteu à pergunta de Chomsky (2016): – Que tipo de criatura somos nós? Ao que ele responde: – Somos seres que se constituem na linguagem através de processos internos (pensamento) e externos (comunicação).

Chomsky aponta, ainda, a dimensão social dos aspectos cognitivos de natureza humana:

 

Os humanos são seres sociais, e o tipo de criatura que nos tornamos depende crucialmente das circunstâncias históricas, culturais e institucionais de nossas vidas. Portanto, somos levados a investigar os arranjos sociais que contribuem com os direitos e o bem-estar das pessoas, satisfazendo suas justas aspirações – em resumo – o bem comum. (CHOMSKY, 2016, p. 94).

 

Assim, e sem mais delongas, finalizo registrando que minhas vivências durante a pandemia se somaram à minha experiência com estes suportes literários em encontro íntimo com essa humanidade que nos atravessa e que pode ou não nos tornar humanos que lutam pela construção do bem comum e resistem ao retorno persistente da barbárie.

A leitura dos livros minimus & brevíssimos e brazil 2020 proporcionam uma experiência prazerosa, incomodativa, que provoca reflexão crítica e instiga o compromisso humanístico e político.

 

por Débora Mazza[1]

 

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. Mãos dadas. In: ______. Sentimento do mundo [1940]. Poesia 1930-62 – Edição Crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 240.

CHOMSKY, Noam. Que tipo de criatura somos nós? Trad. Gabriel de Ávila Othero e Luisandro Mendes de Souza. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

RIBEIRO, Alciene; RAUER. brazil 2020. Uberlândia, MG: Dionysius, 2020. (Dionysius é um selo da Editora Pangeia).

RIBEIRO, Alciene; RAUER. minimus & brevíssimos. Uberlândia, MG: Pangeia, 2020. (Micromínimus 1).

 

Para mais informações sobre brazil 2020, vá a < https://editorapangeia.com.br/?s=brazil+2020 >.

Para mais informações sobre minimus e brevíssimos, vá a < https://editorapangeia.com.br/?s=minimus >.

 

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Conto

Microconto

Nos Tempos do Corona

Rauer

 

*agradecemos ao Editor do Blog da Paigeia pela autorização para republicar esta resenha da Profa. Débora Mazza sobre as quatro representações literárias da pandemia.

 

[1] Professora Doutora da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atua na Faculdade de Educação (FE), no Departamento de Ciências na Educação (DECISE); é membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas, Estado e Sociedade (GPPES) e Pesquisadora PQ CNPq.