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Eduardo Sadalla Bucci | Atualizado em 15/06/2021 - 13:30 FE Publica

O serviço estatal é público?

O serviço estatal é público?

por Eduardo Sadalla Bucci

Os horrores de nosso tempo, a despeito de nossa proximidade, e, portanto, de nosso sentir, são apenas mais um capítulo de uma história sedimentada em horrores, com a diferença de que hoje há a inserção no coração de cada um de que a institucionalidade é a única saída possível para a superação desta realidade. E isso, adiantando o final, e desculpe-me pelo spoiler, é péssimo para o nosso horizonte. Mas há esperança!

Na contemporaneidade, o estatal se tornou sinônimo de público. Exteriorizamos a necessidade de que a saúde seja pública, de que a educação seja pública, de que a assistência social seja pública, de que o transporte seja público, de que a segurança seja pública, e introjetamos que a saúde seja prestada pelo Estado, de que a educação seja prestada pelo Estado, de que a assistência social seja prestada pelo Estado, de que o transporte seja prestado pelo Estado, de que a segurança seja prestada pelo Estado. O Estado converte-se na instituição por excelência pública.

Contudo, essa associação, apesar de parecer natural, é produto de um sistema social que utiliza, dentre outras, a apropriação e o apagamento como ferramentas ideológicas na construção da subjetividade de cada ser humano, por meio de inúmeros aparelhos, estatais e privados, repressivos e persuasivo, massificados e íntimos, manipulando “inocentemente” a história, repetindo-a com cada vez menos detalhes e mais parecidas com o que se aparenta nos dias atuais (p.ex. “movimento de 64”), chegando-se até mesmo à pontuação de que a humanidade já desenvolveu o seu máximo de potencialidade (“o fim da história”).

O que de fato há é que o próprio Estado é uma criação específica da moderna organização social, em que pela primeira vez na história a vida humana se tornou possível por meio da propriedade privada dos meios de produção e do sujeito de direito. E se ambos os termos lhe pareceram um pouco vagos e/ou desconexos, sugiro a inicial e incontornável leitura de AKAMINE JÚNIOR, Oswaldo et al. Léxico Pachukaniano. Marília: Lutas Anticapital, 2019, bem como frequentar as aulas da Profa. Dra. Carolina de Roig Catini, do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social da Faculdade de Educação da Unicamp (GEPECS-FE/UNICAMP).

E como o Estado não é uma entidade que se concretizou a partir de ideias de seres abstratos, está inserido na lógica do valor da sociabilidade capitalista, cujo fundamento se dá na e pela troca de mercadorias, intermediada pelo dinheiro, e cujo valor é criado também por uma mercadoria, mas uma mercadoria especial: a força de trabalho (e se aqui também ficou vago, sugiro POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo: Boitempo, 2014).

Vejamos rapidamente a Unicamp para algo mais palpável.

A Unicamp é o desenho institucional moderno em que o Estado presta o serviço de educação superior. Para tanto, o Estado precisa deter um espaço físico, no caso, uma doação de uma gleba de terra por um antigo proprietário de terras, herdeiro do Banco São Paulo e oriundo de linhagem de capitães-mor (vale a pena pesquisar sobre acumulação primitiva e acumulação por desapossamento ou espoliação). Também, precisa contratar força de trabalho para edificar as instalações físicas. Depois, precisa comprar bens que serão necessários, tais como livros, fotocopiadoras, estantes, cadeiras, mesas, lousa, telefone, entre outros. Por fim, precisa adquirir força de trabalho para prestarem o serviço específico de fornecimento de educação universitária, como, p.ex., professores(as), bibliotecários(as), recepcionistas, faxineiros(as), jardineiros(as), cozinheiros(as) etc.

O Estado, então, não utiliza de doação de parte do tempo das pessoas para o fomento de uma atividade destinada a todos. Pelo contrário, adquire força de trabalho, direta (trabalhadores) ou indiretamente (objetos já trabalhados), por meio de contraprestação pecuniária, para que exista e faça aquilo que tem como destinação: fornecer ensino superior àqueles(as) que passarem no processo seletivo (vestibular). E se você não se perguntou de onde vem o dinheiro ou respondeu o Estado cria o dinheiro, sugiro começar por HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.

Aqui não é necessário explanar, em pleno 2021, após todos os debates e implementação de políticas afirmativas sociais e raciais, como a seletividade tinha (e tem) classe social, portanto, raça e gênero. É recente a transformação do vestibular, que outrora excluía a maioria da população. Agora há uma porta de esperança, muito pequenina, diga-se. Além disso, uma porta que tem maçaneta e fechadura pelo lado de dentro (como, por exemplo, 3 horas de prazo recursal para pessoas que tiveram indeferido a autodeclaração de condição étnico-racial. Se está vago, dê uma olhada na Resolução GR-077/2020, de 20/07/2020).

Essa análise é possível para todos os outros serviços estatais, independentemente do ente específico, inclusive aqueles em que há contraprestação direta (p.ex. transporte, água e esgoto, coleta de resíduos etc.).

Com isso, a compreensão de público vai ficando cada vez menos público e mais o que de fato é: estatal.

Mas o Estado, ainda assim, teria como destinação a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, devendo garantir o desenvolvimento nacional para erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, tal como escrito em letras garrafais no artigo 3° da Constituição Federal de 1988.

Texto por texto, também havia os da Emenda Constitucional n° 01, de 17 de outubro de 1969, de que todo o poder emanava do povo (artigo 1°, §1°), de que havia um regime democrático e plural (artigo 152, inc. I) e de que havia inúmeros direitos e garantias individuais a serem protegidos e assegurados (artigo 153). Também, estava escrito na Lei de 07 de novembro de 1.831 (Lei Feijó) que todos as pessoas escravizadas que fossem trazidas ao Brasil estariam libertadas[i].

Os últimos dois casos, como estão no passado, ficam fácil de se compreender: a lei é uma formalidade que não abarca nem o direito nem o Estado. Se essa afirmação também lhe pareceu incongruente, ou se foi associado com algum tipo de desvio moral, coletivo ou subjetivo, retorno ao conselho anterior sobre o livro que trata de Pachukanis e das aulas da Profa. Dra. Carolina Catini.

É preciso reconhecer, no entanto, que é realmente complexo analisar o presente, conquanto somos parte do próprio objeto. Também, é altamente sedutor olhar para o passado e, como uma escada, entender que estamos em degraus mais elevados que antigamente, e que é só continuar galgando novos passos que tudo irá melhorar (talvez o fosso em que nos encontramos neste momento pandêmico, depois de um período de ganhos sociais pujantes na década retrasada e início da década passada, tenha contribuído na diminuição deste pensamento).

Como a vida não é um plano cartesiano, e sim um complexo processo dialético, essa escada que estamos a subir nos leva diretamente a um precipício social, cuja degradação se escancara em momentos de crise, porquanto, é em tempos de exceção que a verdadeira natureza se aflora. E se aqui também parece não fazer muito sentido, recomendo MASCARO, Alysson Leandro. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018

Exatamente por isso, a democracia liberal, prenhe de contradição, precisa ser utilizada como meio para a emancipação, e não como horizonte a ser sedimentado. A institucionalização, por ser estatal, e não pública, é o local de resistência, mas não da vanguarda. A conquista do poder deve ser trabalhada para fazer florescer uma sociabilidade pautada no ser humano, público, portanto, calcada na liberdade e solidariedade, e não mais na continuidade em sua transformação em mercadoria.

Por isso, se há algo que esse devaneio aqui pretenda fomentar é: leia Pachukanis, mesmo que para refutá-lo, sob pena de não se enxergar os degraus sob os pés e acabar fortalecendo aquilo que é o mecanismo da própria derrocada: a institucionalidade como fim, e não como meio.

 

Eduardo Sadalla Bucci

Doutorando em Educação pela FE/UNICAMP

 

[i] O site https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates mostra a estimativa de pessoas violentamente conduzidas ao Brasil antes e após tal lei