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Iasmin Braga Lima | Atualizado em 22/10/2021 - 09:27 FE Publica

Pedagogia(s) e a (des)democratização no Brasil: considerações de uma ingressante no curso

Uma história real

Uma criança filha de pais separados. O pai, negro da pele retinta. A mãe, branca. A filha, negra da pele clara. Essa criança cresceu com a mãe, tendo contato majoritariamente com a família materna, repito, branca. Via o pai esporadicamente. Quanto a família paterna, parte negra da família: pouco contato, poucas lembranças. Seus referenciais eram brancos. E a escola? Nada. Seus ancestrais? Escravos. 

Essa criança, negra, cresceu querendo ser branca. Seu ideal de beleza era inversamente proporcional à parcela de melanina, ou melhor, de africanidade, que o corpo referenciado carregava. Pele? Branca. Olhos? Claros. Nariz? Fino. Cabelo? Liso. O primeiro passo foi alisar o cabelo. Idade? 6 anos. O segundo, embranquecer sua identidade, negar sua negritude. Negra não, “morena”, “café com leite”, “mulata”. Esses eram os adjetivos que atribuía a si mesma, chorando, quando seu pai dizia, rindo: “você é preta, filha”. Afinal, como construir uma identidade negra positiva quando tudo o que se associa ao corpo negro é negativo?

Suas bonecas não só seguiam esse padrão como deviam se afastar de tudo o que fugia dele. Seu pai lhe deu uma boneca negra? Destino: fundo do baú. “Eu não gosto, mãe, quero uma boneca branca”. Se não houve um referencial em casa e nem na escola, onde teria contato com suas raízes? Não teve. Assim se deu o processo de invisibilização de si mesma. Essa criança fui eu, mas infelizmente histórias como essa não são exclusividade minha. 

 

Não dizer, diz muito

Iniciei com esse relato, porque ele expõe os efeitos da colonialidade do ser, que na ausência de uma educação antirracista e intercultural se potencializa. Além disso, a minha história expressa claramente o que Munanga, citado por Oliveira e Candau, diz da situação do negro como “refém de um sonho de embranquecimento” (Munanga apud OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p.37). 

Minha infância se deu nos anos iniciais após a promulgação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, e certamente as escolas pelas quais eu passei, tanto quando criança quanto quando adolescente, não as aplicaram. Eu cresci sem conhecer a história dos meus ancestrais, apagaram-na. Reduziram a potência do meu povo à mera condição de escravidão. Ocultar a história de um povo, afasta-o de sua luta. É uma estratégia de silenciamento.

O apagamento de identidades, por sua vez, não se restringe ao corpo negro, ele transborda a todos os corpos não brancos e/ou que fogem à cisheteronormatividade imposta pela sociedade e replicada pela escola. Se não temos sequer uma educação democrática, que trate da pluralidade que compõe a nossa sociedade, como podemos assegurar a democracia? 

 

Democracia de papel

Para discutir os rumos da democracia é necessário, então, que percebamos que nem mesmo vivemos em uma sociedade verdadeiramente democrática. Em seu vídeo “A ‘democracia’ nunca chegou na periferia”, Thiago Torres (2020), morador da periferia de São Paulo e sociólogo em formação pela Universidade de São Paulo (USP), expressa, com base na sua vivência e estudos, que o que chamamos de Estado Democrático de Direito nunca foi uma realidade para os grupos marginalizados da sociedade, que, por sua vez, vivem um Estado de exceção permanente. Esses grupos têm os princípios básicos da democracia, como o respeito aos direitos humanos, violados a todo momento. Têm o direito “à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (ONU, 1948) violado, quando são atravessados pelo risco iminente de violência ou morte; têm seu direito à privacidade violado quando têm suas casas constantemente invadidas pela polícia; têm seu direito a “um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis” (ONU,1948) violado quando, por exemplo, a insegurança alimentar assombra mais da metade dos brasileiros (Rede PENSSAN, 2021). 

Como alerta Torres (2020), para tratar de um problema é necessário, primeiro, reconhecê-lo, tendo feito isso seremos capazes de traçar estratégias para solucioná-lo. Bell Hooks chama a atenção para a importância da educação nesse sentido, quando diz que “a democracia prospera em ambientes onde o aprendizado é valorizado, onde a habilidade de pensar é marca de cidadania responsável, onde a liberdade de expressão e o desejo de dissentir são aceitos e incentivados” (HOOKS, 2020, p.45). Precisamos da educação, primeiramente, para que se aprenda o que é, de fato, democracia, e, a partir daí, seja possível enxergar as falhas do modelo vigente hoje. 

Como dizer que rege um “governo do povo” se quem governa e toma as decisões são as classes dominantes? E que, para isso, essa classe busca afastar esse “povo” do poder, não só excluindo determinados saberes da História e impedindo que certos grupos sociais tenham uma vida digna e de acesso ao conhecimento, mas também propagando o obscurantismo histórico e afastando, assim, a possibilidade de transformação social. Podemos chamar de democracia um regime excludente que mais se parece com uma oligarquia?

 

Humanidade em disputa

Diversos processos históricos desencadearam, por exemplo, a conquista da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 e da Constituição Federal de 1988, entre tantos outros documentos, órgãos e legislações que deveriam garantir os direitos humanos a todos os cidadãos. No entanto, como vimos, isso não reflete a realidade. O caráter excludente, por sua vez, não tira a importância destes aparatos legais, mas nos mostra que eles não atingem seu objetivo primordial, ou seja, a garantia desses direitos a todos. O que ocorre, na verdade, é a garantia a alguns e a exclusão de outros. Ora, seriam uns “mais humanos” que outros? 

Frases como “direitos humanos para humanos direitos” são exemplos de que a concepção de humanidade não é universal, mas algo em disputa. A própria negação desses direitos a determinados grupos sociais nos revela isso. Uns têm direito à educação, outros não. Uns têm direito à proteção, outros não. Uns têm direito à alimentação, outros não. Uns têm direito à liberdade, outros não. E uma sociedade – teoricamente – democrática que não respeita os direitos humanos tem uma democracia falha.

A ineficácia dos aparatos legais frente às condições materiais evidencia que, para uma aplicação eficiente, falta algo. É necessário se desfazer da perspectiva dominante que ronda a concepção de Direitos Humanos. Isso se fará através de uma educação que não só questione os ideais dominante e rompa com sua propagação, mas que os substitua por novos, e mais democráticos, ideais, promovendo espaços de valorização e respeito à outras perspectivas.

 

Educação é a solução? Depende

A educação é, certamente, uma arma poderosa de transformação social, mas isso não significa que seja, por si só, a solução, já que, como vimos, ela pode ser usada em prol de ideais mais ou menos democráticos. A educação é um meio estratégico ao se buscar transformação em massa, justamente por isso diferentes formas de governo buscam adequá-la a seus valores. Através de movimentos como o Movimento Escola Sem Partido (MESP), grupos conservadores e reacionários da sociedade buscam induzir professores ao silenciamento, na tentativa barrar os/as estudantes do acesso à conhecimentos que possam questionar os elementos estruturantes e as estruturas de poder da nossa sociedade, ao passo que a educação, até aqui, serviu para a manutenção dessas estruturas.

A “chave” está, portanto, no modo de se fazer educação, na pedagogia. Como vimos, ainda que a educação seja um meio necessário e importante na (re)democratização da sociedade, ela atua também na reprodução das opressões existentes no seu interior. Neste contexto, o fim que lhe será atribuído cabe ao educador, à sua prática pedagógica e à sua concepção de educação. Para tanto, é necessário “um compromisso profundo e contínuo com a justiça social” (HOOKS, 2020, p.41). 

A educação atua na formação de cidadãos e são esses os cidadãos responsáveis por construir e manter uma sociedade democrática, e como não se faz democracia sozinho/a, é necessário participação e compreensão de um todo. Uma pedagogia em compromisso com a justiça social, por sua vez, é uma pedagogia antirracista, intercultural e, principalmente, crítica. Essa pedagogia, logo, formará sujeitos que compreendam, valorizem e respeitem a diferença, e, sobretudo, formará sujeitos questionadores. Por que existe pobreza? Por que existem milionários? Por que existe desigualdade social? Não “foi sempre assim”.

Os diversos ataques à educação e à pesquisa científica, no entanto, mostram que não é de interesse das classes dominantes a ampliação do acesso ao conhecimento e à uma educação crítica e de qualidade, justamente porque criticidade implica questionamento e questionamento não combina com passividade. Passividade, frente ao desconhecimento, é o que permite que não questionemos e, portanto, não atuemos para a transformação social.

 

Rumo à democracia

 Enquanto vivermos em uma sociedade que seleciona que história merece ser contada ou não e quem merece direitos ou não, viveremos em uma sociedade que seleciona quem exercerá a democracia e a desfrutará. E esse sistema de seleção e exclusão não condiz com um regime político verdadeiramente democrático.

Não vivemos em um mundo de uma história só, portanto propagar uma história única é, no mínimo, desonesto. A sociedade é plural, bem como a sala de aula, e os ideais perpetuados através da educação incidem no mundo. Por isso é importante que, através da educação, os/as estudantes enxerguem, compreendam e respeitem a si mesmo e aos outros. Do contrário, uma educação que nega saberes e corpos, promove o apagamento e silenciamento dessas pessoas. Da mesma forma, uma educação que dissimula a compreensão dos processos estruturantes da nossa sociedade, atua para a manutenção dessa estrutura.

Quando, enfim, exercermos nosso papel político no mundo para além dos limites que impõe uma sociedade capitalista, quando conhecermos a nossa história e a história dos nossos, quando compreendermos os princípios de uma democracia, estaremos, então, a caminho de uma sociedade democrática.

 

 

Referências: 

 

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm&gt;. Acesso em: 03 jul. 2021.

 

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm…;. Acesso em: 03 jul. 2021. 

 

HOOKS, bell. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. Tradução Bhuvi Libanio. São Paulo: Elefante, 2020.

 

Oliveira, Luiz Fernandes de e Candau, Vera Maria Ferrão. Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil. Educação em Revista. 2010, v. 26, n. 1, pp. 15-40. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-46982010000100002&gt;. Acesso em: 03 jul. 2021.

 

ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 03 jul. 2021.

 

Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN). Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. 2021. Disponível em: <http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf&gt;. Acesso em: 03 jul. 2021.

 

TORRES, Thiago. A ‘democracia’ nunca chegou na periferia. Youtube, 2020. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=PLHLNGpEvrA >. Acesso em: 03 jul. 2021.