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Giovanna da Costa Romaro | Atualizado em 18/03/2024 - 11:55 FE Publica

Precisamos falar sobre as cotas e o apagamento das pessoas com deficiência

     Em 2012, o Brasil deu um importante passo ao aprovar a Lei de Cotas para as instituições federais de Ensino Superior. A medida proporcionou o avanço da diversidade de presença, representação e contribuição no pensamento acadêmico de grupos que antes tinham raríssimo acesso à Educação Superior. Aqui estamos falando sobre pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência.

     Algum tempo depois, em 2016, a Unicamp finalmente começou a discutir sobre as cotas étnico-raciais, sob a pressão do movimento estudantil na greve, o que promoveu a implementação das mesmas nos cursos de graduação a partir de 2019 – por se tratar de universidade estadual, a Unicamp não era obrigada a seguir a legislação vigente das universidades federais. A última universidade do Brasil a implementar cotas no vestibular, a Unicamp tentou melhorar sua imagem criando o Vestibular Indígena, com algumas adaptações aos candidatos de diferentes povos.

     Com a implementação dessas ações afirmativas, o corpo estudantil da nossa universidade passou por uma mudança estrutural ao longo dos últimos 5 anos, que reverberou não apenas na diversidade de corpos, mas na possibilidade de rever algumas estruturas pedagógicas nos cursos superiores. De questionamentos em aula – sobre a ausência de autores negros na bibliografia – a manifestações públicas – com homenagens aos cadáveres negros das aulas anatomia – e embates até mais potentes – com a intervenção dos dizeres “racista” sobre um retrato de Monteiro Lobato –, a inserção de novos pensamentos tem sido transformadora para toda a comunidade universitária.

     Agora, com a Lei 14.723 de 2023, as cotas nas instituições federais passam a incluir também os grupos quilombolas. Com isso, alguns devem se perguntar se a Unicamp acompanhará a mudança da legislação. No entanto, a Unicamp nunca acompanhou essas mudanças, afinal de contas, embora a Lei de Cotas originalmente cite as pessoas com deficiência (PcD), a Universidade Estadual de Campinas até hoje não determinou a inclusão deste grupo nas ações afirmativas.

     Ao longo da história, o grupo de pessoas com deficiência foi continuamente excluído, apagado e marginalizado de diversas maneiras: através do extermínio justificado pela percepção de que a deficiência não era natural, mas um defeito a ser erradicado; através da desumanização dos corpos, com exposições em feira de “horrores”, circos e jaulas; através da exploração científica sem consentimento, muitas vezes justificada pela percepção das deficiências como algo descartável; através da segregação em instituições médicas e psiquiátricas, como manicômios, ou mesmo o isolamento social familiar, justificado pela vergonha que muitos tinham de seus entes. É só dos anos 70 em diante que as pessoas com deficiência passaram a ser encaradas aos poucos como pessoas, que têm o direito à vida, à dignidade, à saúde, à educação, ao trabalho, à cultura e à participação social e cidadã.

     Hoje no Brasil, somos 18,6 milhões de pessoas com deficiência, atingindo a marca de 8,9% da população, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2022. Na região sudeste, a taxa é de 8,2%, a mais baixa do país. Apesar do número de pessoas com deficiência ser considerável – 8 em cada 100 pessoas – este grupo é o que sofre com a maior desigualdade em nossa sociedade. 

     Entre pessoas com deficiência, a taxa de analfabetismo chega a 19,5%. Apenas 25,6% deste grupo consegue concluir o ensino médio e, pior ainda, apenas 7% consegue alcançar uma titulação no ensino superior. 

     No mercado de trabalho, as pessoas com deficiência são o grupo menos “empregável” da sociedade, com apenas 26,6% tendo emprego formal. Mais de 50% das pessoas com deficiência formadas no Ensino Superior seguem desempregadas. A falta de inclusão deste grupo atinge todas as áreas, desde a falta de acessibilidade arquitetônica até a falta de recursos assistivos (intérpretes de Libras, braile, audiodescrição, legendas, comunicação simples) para ter o mínimo de acesso à informação. 

     Na Unicamp não é diferente, a maioria dos edifícios não possui arquitetura adequada, a Central TILS atualmente conta com apenas 2 tradutores intérpretes de Libras, não há outros profissionais de suporte às deficiências no campus e ainda estamos por ver uma política efetiva de Atendimento Especializado. Segundo o Serviço de Informações ao Cidadão, em 2023 a Unicamp tinha apenas: 37 estudantes com deficiência matriculados na graduação em um corpo de 18.419 graduandos, 93 servidores técnico-administrativos com deficiência e 24 docentes com deficiência num total de 8813 servidores docentes e não docentes. Embora haja legislação que prevê o mínimo de 5% de profissionais com deficiência contratados em instituição com mais de 1000 empregados, a Unicamp descumpre a cota tendo apenas 1,35% de técnico-administrativos com deficiência e 1,23% de docentes com deficiência. Para além da falta de acessibilidade, notamos uma falta de comprometimento com a inclusão.

     O debate é continuamente negligenciado em nossa comunidade. Primeiramente, a Unicamp criou um GT para a implementação das cotas PcD nos colégios técnicos, mas quando questionada pelo Ministério Público sobre por que a implementação não abarcava o vestibular, a Diretoria Executiva de Direitos Humanos respondeu que havia falta de estrutura, inclusive citando a falta de profissionais biomédicos, como enfermeiros, psiquiatras, fisioterapeutas, entre outros. Tal afirmação não foi bem recebida pelas pessoas com deficiência que já estavam presentes no corpo universitário, uma vez que implica em uma percepção biomédica da deficiência, algo que já foi superado pela Convenção Internacional de Direitos Humanos – segundo a qual, a deficiência “resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.

     Na ocasião, os departamentos da Faculdade de Educação da Unicamp se posicionaram em defesa das pessoas com deficiência, destacando a importância de adaptações pedagógicas e profissionais para um atendimento especializado, reconhecendo que o devido suporte pedagógico e adaptações razoáveis são um caminho mais efetivo para a inclusão das deficiências.

     Havendo contradições, o Ministério Público cobrou nossa universidade de promover um estudo mais aprofundado sobre a estrutura e as justificativas para implementar ou não as cotas para as pessoas com deficiência. Somente em 2023, foi instaurado um Grupo de Trabalho para analisar a implementação das cotas para pessoas com deficiência no vestibular da Unicamp. Em outubro passado, o GT publicou o resultado com um relatório que indicava ser opcional a implementação de cotas para este grupo nos cursos de graduação, colocando a responsabilidade da decisão sobre as congregações das faculdades e institutos.

     Embora a reitoria tenha prometido, durante a negociação de greve em 2023, organizar duas audiências públicas sobre o tema, realizaram apenas uma reunião expositiva do GT de Cotas no dia 07 de março, sem sequer compreender a necessidade de oferecer intérpretes de Libras e audiodescrição ao público convidado, que era de pessoas com deficiência.

     Os poucos de nós que se fazem presentes na universidade não estão sendo inseridos como protagonistas do debate sobre os nossos corpos e os nossos direitos. É possível debater cotas para pessoas com deficiência em congregações, quando a universidade não faz o mínimo de debate com a comunidade acadêmica sobre o que é deficiência, o que é inclusão, o que é acessibilidade e o que é capacitismo? Infelizmente o que esperamos não poderia ser pior, seremos sujeitados a ouvir inúmeras falas discriminatórias nas instâncias universitárias, antes mesmo de termos o direito à palavra. 

“A inclusão acontece quando se aprende com as diferenças e não com as igualdades.” Será que um dia a Unicamp estará disposta a seguir os ensinamentos de Paulo Freire? 

Nada sobre nós sem nós.

Giovanna Romaro - Funcionária Técnico-Administrativa da Coordenação de Extensão, Eventos e Projetos Especiais da FE, compõe a Comissão de Acessibilidade e Inclusão da FE e é membra do Coletivo Anticapacitista Adriana Dias.

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