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Roberto Goto | Atualizado em 09/05/2023 - 12:07 FE Publica

Receita para bem ensinar Física

 

RECEITA PARA BEM ENSINAR FÍSICA* 

Uma lata de cerveja (vazia), um relógio de pulso, um termômetro, uma bola de aço, uma pedra ou  mesmo uma pena de galinha preta: qualquer um desses objetos, individualmente ou combinados  entre si, basta para que alguém meça a energia irradiada pelo sol, conheça uma das leis formuladas  por Galileu ou redescubra o fenômeno da decomposição da luz solar nas sete cores fundamentais,  reproduzindo em nova versão uma clássica experiência de Newton. 

Com esses simples, comuns e sobretudo “pobres” ingredientes, que podem ser encontrados  facilmente, a preços baixos ou gratuitamente em qualquer região do país e do mundo, o físico  Rodolpho Caniato, professor da Universidade Estadual de Campinas, elaborou e vem ensaiando  desde 1970 uma das mais inovadoras e revolucionárias receitas de como ensinar Física para jovens,  adultos e velhos que alimentam temor e aversão por essa ciência natural que os métodos  tradicionais de Educação transformaram numa verdadeira máquina de tortura. 

Na receita do educador da Unicamp, que ele denominou de “Projeto Brasileiro para o  Ensino de Física”, todo o universo – a terra e o céu – pode ser resumido num balão de ensaio onde,  a fim de simular a linha do horizonte, se coloca água azulada até a metade. Para estudar o  movimento e o comportamento do firmamento sobre qualquer região do planeta, com os seus  principais astros, é necessário apenas alterar a posição do balão sobre o seu tripé e ir fixando as  estrelas nessa fictícia abóboda celeste. 

Trata-se, evidentemente, de simulação. Na verdade, não é o céu que gira em torno da terra,  mas esta que se movimenta no universo, juntamente com os demais corpos celestes. Como explica  Caniato, “este é apenas um modelo, e um modelo não é sinônimo de miniatura, mas de teoria. Sua  vantagem não é somente a de mostrar como se processam os fenômenos nas situações em que se  considera a terra imóvel, mas também a de indicar as diferenças que existiram entre a Astronomia  de antes e depois do advento da teoria heliocêntrica”. 

Viver a Física 

Coloque água numa lata de cerveja e exponha-a ao sol. Vá registrando a temperatura do líquido  durante intervalos regulares de tempo, com um termômetro comum. Os intervalos e o período todo  em que a lata ficou exposta podem ser medidos com o relógio de pulso. A cada vez que completar um dos períodos, consulte o termômetro e registre a temperatura e o horário. Depois, estabeleça a  relação entre os graus centígrados e os minutos. Você acaba de medir a energia irradiada pelo sol. O primeiro volume do “Projeto Brasileiro para o Ensino de Física”, que o autor subordinou  ao pequeno título “O Céu”, tem muitas outras experiências que procuram se basear na Astronomia  para apresentar conclusões típicas da Física. “É que a Astronomia – diz o professor – engloba  assuntos e problemas que se relacionam direta ou indiretamente com quase todos os campos do  conhecimento científico ou não-científico, e como uma das primeiras ciências formuladas pelo  homem, pode facilmente servir como motivação para as aulas de Física”. 

Num de seus capítulos, o livro pergunta: “De que são feitas as Estrelas?” A questão é  extremamente rica, pode gerar muitas outras perguntas. Entre as quais, está: “o que é luz?” E para  respondê-la, o aluno não terá que mergulhar em nenhum compêndio acadêmico. Bastará olhar a  chama de uma vela através de uma pluma negra (ou seja, uma pena de galinha preta) e observar a  difração da luz (isto é, sua decomposição nas sete cores elementares). 

Todos os experimentos propostos, descritos e explicados nos dois volumes elaborados pelo  professor Caniato (o segundo tem o nome de “Mecânica”) são simples e, sobretudo, baratos.  Ensinam, por exemplo, o estudante a utilizar-se de outras ciências (como a Astronomia e a  Geometria) não como finalidades em si, mas como meios para chegar a outros conhecimentos na  sua área de estudos. 

As vantagens, as consequências e os estímulos são muitos. Mas a preocupação é uma só.  “O importante – conta Caniato – é fazer com que o educando desenvolva o máximo de atividades  possível, procurando sempre que puder utilizar diretamente as mãos; o importante é fazê-lo viver  a Física”.  

Três níveis 

O método do professor Rodolpho Caniato pressupõe um programa de Ensino dividido em várias  unidades de estudo, a ser desenvolvido através das aulas e dos experimentos. Essa estrutura,  entretanto, não é fixa nem rígida, e a aprendizagem pode ser iniciada por qualquer uma das partes.  “Não é necessário começar a ler o livro pela primeira página; se a pessoa tem pouco tempo, pode  escolher os assuntos de maior interesse e possibilidade. Não existe uma ordem obrigatória e cada  seção, com raras exceções, não é pré-requisito para a seguinte”. 

O ensino se processa em três níveis, que o professor estabeleceu a fim de respeitar o fato  de que “os alunos de uma mesma classe podem ser muito diferentes, tanto pelas suas aptidões  como pelas suas aspirações, e por isso não podem ser forçados a se submeterem às mesmas  quantidades e dificuldades de matéria”. 

O nível número um, aplicado a todos os estudantes sem distinção, inclui um conjunto de  informações e conhecimentos fundamentais da disciplina, acompanhados por um número mínimo de atividades experimentais, desenvolvidas em ambientes que não devem ser necessariamente  laboratórios escolares, com material simples e convencional. 

Os alunos que, por capacidade e interesse, conseguirem ultrapassar esse programa  fundamental e querem saber “um pouco mais”, serão promovidos para o nível número dois, que  envolve uma aprendizagem mais detalhada dos assuntos estudados. As experiências tornam-se um  pouco mais complexas e o equipamento mais específico. 

No nível número três passam a trabalhar os estudantes que “podem e querem saber um  pouco mais ainda”. As unidades de estudo implicam então detalhes e pormenores maiores, a  linguagem torna-se mais sofisticada, “ou seja, mais matemática”, e os cálculos se complexificam. 

Esse sistema não traz como consequência nenhuma discriminação entre os educandos,  explica Caniato. “É, ao contrário – diz ele –, apenas uma maneira de permitir que os estudantes  mais adiantados possam especializar-se no seu campo científico preferido e obtenham dessa forma  alimento mais sólido, aproveitando o tempo que perderiam se permanecessem só no nível número  um”. 

Papel do professor 

O professor tem, no sistema do físico Rodolpho Caniato, o papel de um regente de orquestra.  “Cabe a ele interagir intensamente com os educandos e usar sua maior experiência para conduzir  e balancear a participação dos alunos, esforçando-se em evitar o esclerosamento e a fossilização  dos conhecimentos e dos hábitos de ensino”. 

Tanto educando como educador são participantes do jogo ensino-aprendizagem. Por isso  mesmo, há regras e normas, que Caniato expõe no prefácio das suas obras não para dar rigidez ao  método, mas para incentivar e permitir sua flexibilidade. 

O que o professor renega e condena é “a concepção tradicional de educação, em que o  aluno trabalha passivamente, apenas ouvindo ou copiando, enquanto o educador transmite a  matéria numa linguagem rebuscada e, muitas vezes, até esotérica”. 

“Nosso Ensino de Física – define ele – em geral é parecido a cursos de natação por  correspondência, nos quais não adianta que o professor seja um campeão olímpico se o aluno não  pode sequer entrar na água. Necessitamos de uma Física ativa, que envolva atividades, ideias, troca  de argumentos (vale dizer, discussões) e sobretudo experiências diretas com os problemas  estudados”. 

A função do professor, diz Caniato, não deve ser a de simples fonte de conhecimento e a  postura do aluno não pode se resumir em apenas receber. “Em geral, no sistema tradicional de  Ensino, o recipiente (o estudante) realmente se enche – nos dois sentidos – mas raramente  aprende”.

Uma Física para o Terceiro Mundo 

O “Projeto Brasileiro para o Ensino de Física” já foi apresentado recentemente para os estudantes  da Colômbia e da Guatemala. Em Bogotá, o físico da Unicamp representou o Brasil na I Reunião  Latino-Americana sobre Didática de Física, da qual participaram delegados de todo o Continente.  Em Honduras, o sistema foi exposto e explicado para um grupo de 40 professores universitários 

que irão aplicá-lo na Universidade Nacional da Guatemala e nas escolas secundárias.  Rodolpho Caniato explica que a receptividade nos outros países em relação ao novo  sistema se deve principalmente a esses fatos: o método valoriza a capacidade imaginativa dos  educandos e propõe a utilização de instrumentos extremamente simples, adequados às condições  socioeconômicas das nações em desenvolvimento. 

Além disso, o projeto é um forte estímulo – e uma das condições – para a independência  tecnológica, na medida em que torna possível a formação de técnica e tecnologia mais compatíveis  com as possibilidades e necessidades do país. 

O sistema pode produzir técnicos mais criativos, realistas e, principalmente, mais  conscientes das situações imperantes nas regiões subdesenvolvidas. 

O projeto do físico da Unicamp pode, em última análise, ser resumido numa “Física pobre  para países pobres”. A expressão “Física pobre” deve ser entendida, entretanto, apenas do ponto  de vista material. Se há pobreza de equipamentos, é necessário supor, contudo, uma riqueza de  imaginação e criatividade. E é criando soluções próprias para condições específicas que se poderá  superar a pobreza, em todos os níveis e planos. 

A morte do “monstro” 

Orientado por esse ideal, o autor vai iniciar uma série de aplicações práticas de seu projeto, dando  prosseguimento, numa nova fase, aos ensaios que começaram a ser desenvolvidos em 1970. Ainda  neste mês, a Universidade de São Carlos passará a utilizar o sistema nos seus cursos básicos. E os  alunos de Prática de Ensino de Física, da Unicamp, já estão aprendendo a empregá-lo. 

Caniato recebeu ainda convites de duas cidades paulistas (Jundiaí e Presidente Prudente)  para ministrar cursos sobre o assunto. Além disso, tem recebido o apoio de várias entidades  científicas brasileiras, entre elas a Funbec, a Fapesp, o Departamento de Física da Universidade  de Rio Claro e o Centro de Treinamento para Professores de Ciências do Estado.  

Os dois volumes que compõem o trabalho, até agora, foram impressos pela Universidade  Estadual de Campinas. Aos textos de estudo, o autor juntou várias fotografias estroboscópicas de  experiências realizadas em laboratório com equipamento comum. Muitos desenhos, elaborados  com a precisão dos próprios fenômenos físicos, estão presentes também para ilustrar a matéria. 

O “Projeto Brasileiro para o Ensino de Física” é válido praticamente para todos os níveis  de escolarização, mas especialmente o secundário e o básico universitário. Como o próprio autor o define, trata-se de uma “Introdução à Física”, mas que pode ser decisiva para os alunos na medida  em que procura apagar a velha imagem do “monstro de sete cabeças” de uma ciência que não é,  no fundo, senão o estudo dos fatos da natureza e suas inter-relações. 

Confiram as fotos da publicação física no link abaixo:

 

* Texto escrito por Roberto Goto, publicado pelo Correio Popular, de Campinas, em sua edição dominical  de 31 de agosto de 1975, na página 45, sem assinatura (era política do jornal, na época, não publicar matérias  assinadas por seus repórteres, a não ser em circunstâncias excepcionais). A entrevista com o Prof. Rodolpho  Caniato – um dos pioneiros da Faculdade de Educação, contratado em 1972 – foi sugerida ao repórter (então  cursando o terceiro ano de Filosofia na PUC-Campinas) pelo Prof. Rubem Alves, cujo renome na cidade  vinha sendo construído e disseminado por pessoas como o Prof. João Francisco Regis de Morais, que  lecionava na PUCC e seria posteriormente orientando de doutorado e colega de Alves na FE da Unicamp.