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Heloísa A. Matos Lins | Atualizado em 15/06/2021 - 13:36 FE Publica

Orientando em campos virtuais

Estágios docentes: entre pandemia, pandemônio e (talvez?) rotas de fuga

Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos [...]
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver [...]
(Gilberto Gil,
Tempo rei, 1984)

Concebo esta obra como uma invenção de possíveis, de res-ex-istências de coletividades e subjetividades, diante de nosso assombro com o que se passou em 2020 (espanto que pode ser frequente e contínuo, uma vez que estamos a atravessar ainda em 2021 ). Experiências-sensações-memórias narradas aqui como uma tentativa de se cravar, no tempo, um momento que nos afligiu, fundamentalmente. Uma materialização possível, dentre tantas surgidas e espalhadas pelos “cantos” do planeta, para refletirmos sobre o percurso especial e delicadíssimo de formação docente e das (in) possibilidades das/nas relações de ensino-aprendizagem, tanto na educação básica como no ensino superior. (Im)possibilidades que se deram a ver-sentir-experenciar com a magnitude da pandemia de COVID-19 - como acontecimento potente para atravessar/afetar culturas e subjetividades - e o protagonismo do SARS-CoV-2, por consequência, como um “vírus pedagogo” [5]. Intuímos, assim, que esse período seja lembrado, num futuro que vislumbramos, como mais um momento histórico em que o antropocentrismo foi colocado em xeque e que algo essencial para a humanidade - na relação intrínseca com a natureza, com o trabalho, com a vida, com os pares - pôde se (re)apresentar (apenas para quem assim desejou/permitiu) em termos
de aprendizagens outras, de aberturas para “novos” mundos e projetos de sociedade (global e localmente). Uma espécie de portal, então, se abriu... Nessa esteira das aberturas (quem sabe até de utopias, concebidas aqui como um porvir construído pelo conjunto das ações e desejos cotidianos), de mudanças e também de importantes intensificações de antigas crises, as escolas básicas e as universidades não sairiam ilesas, assim como suas gentes (destacadamente em termos dos efeitos do racismo, patriarcado, imperialismo, colonialismo, adultocentrismo, por exemplo).

Entre os meses de março e abril de 2020, vivíamos um momento em que as ciências epidemiológicas já anunciavam que demoraríamos, em média, até dois anos para encontrarmos alguma melhora sanitária, mesmo que muitos(as) tenham demorado a compreender o que isso, de fato, significava. Lamentavelmente, sabemos daqueles - em diferentes posições sociais - que até agora não aceitam os fatos ou estão mais ocupados com a saúde da economia... Nesse contexto de desafios imensos, naquele início, debatíamos sobre como seguir, sem nos aglomerarmos fisicamente, sobre como nos reinventar de algum modo. Como as escolas/universidades poderiam continuar sendo/ existindo, mesmo fechadas? Mesmo considerando todas as armadilhas técnicocapitalísticas que nos impingiam (e certamente continuam a nos impingir, até com mais intensidade) – bem como concebendo uma escola-relação humana presencial insubstituível - haveria alguma possibilidade de suspensão de nossa atividade humana pensante-agente no mundo (afeita às dimensões subjetivocoletiva e político-pedagógica, que transbordam as paredes físicas das escolas)? Colocando as coisas de outro modo, num momento inédito para a nossa geração, completamente excepcional, como manter apenas os mesmos instrumentos analíticos pregressos e negar (no sentido de não agir, de não seguir), “simplesmente”? Como forjar modos possíveis e criativos durante a ronda da
morte em nossas vidas? Seria possível “passar a perna” nessas amarras do ultraliberalismo e inventarmos brechas mínimas (mas talvez potentes) para nos reinventarmos – mesmo que minimamente - como sociedade, como escola, como cidadãos e cidadãs? Isso porque, junto da pandemia, tínhamos - como brasileiros - já o pandemônio, o desgoverno, em termos de ameaças ao Estado democrático de direito, convivendo com anti-intelectualismo, o negacionismo científico a todo vapor (inclusive com um movimento anti-vacina que muito se fortaleceu, assim como as pautas antiambientais, etc.), um completo descaso em termos de políticas públicas sobre a participação social-educacional das crianças e jovens menos favorecidas economicamente (que sequer tinham/ têm acesso ao que poderia ser proposto de modo “remoto”), para citarmos alguns aspectos. Como parar, então, enquanto “a boiada” só passava? E esse enfrentamento (principalmente quanto ao obscurantismo) precisava se dar na assunção profunda da prioridade do direito à vida, considerando também a educação como um direito inalienável (mesmo em momentos de catástrofe [6]), tal como disposto constitucionalmente.

Isso apenas destaco como um breve quadro, para refletirmos a respeito de como não havia/não há espaço para ingenuidades, mas também para pensamentos binários (tidos como “críticos”) por parte de quem integra as escolas/universidades, sob o toque-de-caixa da urgência para projetarmos “soluções” ou, de outro modo, para aceitarmos passivamente o que nos é imposto por tais políticas. Diante disso, sabemos como as discussões sobre os caminhos possíveis foram acaloradas, intensas e pouco consensuais também no campo da educação. 

Nesse caldeirão, a turma de estágio e eu aguardávamos uma posição da Faculdade de Educação da Unicamp, para sabermos se iniciaríamos a disciplina, efetivamente. Combinamos por manter alguns encontros síncronos naqueles dias, mesmo com todas as indefinições. Conversávamos a respeito do que nos acontecia como pessoas, educadores(as), estudantes, etc, do que nos aguardava... Da forma como compreendo (e ouvi dos(as) estudantes), nos fortalecíamos ali também, afetiva e racionalmente, diante do que se apresentava também como um caos... Aprendíamos, conjuntamente, a nos mobilizarmos, num terreno de incertezas profundas. Não havia garantias ou “exigências” mútuas. Foi um tempo de diálogo entre mim e a turma de estudantes, em que a universidade estava e não estava presente. Tempo de espera, tempo de aflições, de incertezas, mas também tempo de esperanças, de antigas e novas perguntas, de (re) invenções...Tempos aiôn e kairós tomando o chronos... Nessa interessante sobreposição-multiplicidade, éramos/ estávamos diferentes, embora “iguais”...A universidade e a disciplina também. Uma espécie de suspensão daquilo que conhecíamos e supúnhamos compreender, enquanto alguma referência anterior nos amparava também.

Ailton Krenak ensina o quanto é importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, “não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros. Poder ter um encontro [...] Vocês podem ter certeza de que isso me dá o maior gás para esticar um pouco mais o início do fim do mundo que se me apresenta” (KRENAK, 2019, p. 27, grifos meus [7]). Do mesmo modo, concebo que esses nossos encontros tenham sido uma espécie de corazonar, como faz em conjunto o povo indígena andino Kitu Kara, quando prepara o terreno para o plantio e a colheita. Um modo de criação de pontes entre emoções/afetos, de um lado, e conhecimentos/razões, de outro. Assim também seguimos, como compreendo: corazonando, sentipensando [8], até que a instituição definisse alguns rumos (e para depois disso!). Boaventura S. Santos (2019) nos ajuda a vislumbrar a importância do “aquecimento da razão e da ética”, através dessas práticas coletivas-fraternais. Em suas palavras: “Aquecer os conceitos significa transformar a latência em potência, a ausência em emergência, o inatingível no ‘ali-à-mão’. As emoções que aquecem a razão são emoções como um objeto e um objetivo [...] Trata-se da única posição progressista num tempo que proclama de forma crível não haver alternativa” (SANTOS, 2019, p. 150-151).

Diante desses aspectos, a obra que aqui se apresenta, nasce desse nosso agir-devir. Mantive-mo-nos unidos durante essa crise - que não teve ainda fim (no caso brasileiro, talvez demore ainda mais)- e algo surgiu como inventividade/instauração de mundos, de sociedades, do fazer escola/universidade.Talvez tenhamos criado, nesse difícil processo, algo como uma suficiência íntima: aquilo que Santos apresenta como o estado que um grupo suficientemente corazonado adquire: “uma determinação inabalável de continuar”, uma “forte determinação [9]”, mesmo sabendo de tantos aspectos negativos que também estão à espreita, logo ali e aqui...São muitos!

Assim, além de Krenak e Boaventura, nossos(as) demais interlocutores(as) foram uma parte essencial nesse processo dialógico e criativo - como Paulo Freire, Davi Kopenawa, Inés Dussel, Daniel Munduruku, Márcio Danelon, Francesco Tonucci, Emanoele Coccia , Vera Candau, Walter Koan, António Nóvoa, Sílvio de Almeida, Bader Sawaia, Maria Carmem Barbosa , Helena de Freitas, por exemplo, por entrecruzamentos polifônicos e semióticos: lives, fóruns de discussão, capítulos de livros e artigos, assim como quem nos abriu a escola e os campos de estágio online (e também se abriu, oportunizou outros encontros, novas fricções, agora “remotas”). Neste sentido, a relação tecno-mediatizada com supervisores (as) de campo, assim como com os(as) estudantes dessas escolas públicas, em sua maioria, foi decisiva para as nossas atividades e reflexões. Tempo de escuta e de partilha ímpares, excepcionais também, entre universidade e escolas. Algo que não deve ser comparado/ avaliado - por princípio - com a realidade anterior, como tanto discutimos “em sala”. Sob tais circunstâncias  incomparáveis, seguimos com a proposta da disciplina:

A partir de uma abordagem centrada nas Pedagogias da diferença e na
Educação para os direitos (não/humanos), a proposta do estágio estará
voltada para a composição de olhares atentos às práticas educativas
colonizadoras e para a proposição de alternativas diante dos processos
de “normalização” das crianças e jovens: do(s) outro(s), do(s)
considerado(s) “diferente” (s). Propõe uma participação ativa dos(as)
estagiários(as) nesse processo de invenção contra-hegemônica,
decolonial, e de aberturas às diferenças, ao direito à participação e
informação das crianças e jovens, com base em seus próprios temas de
interesse (tais como racismo, gênero, etnocentrismo, sexualidade,
monolinguismo, motivação, afetividade, entre outros) [10]
.

Nesse trajeto, como temos acompanhado pela grande mídia, tempos duros e excepcionais podem continuar em nossas vidas e escolas, ainda que tenhamos agora algumas vacinas, mas não a vacinação garantida e democratizada...Seria muito bom termos aprendido e continuarmos aprendendo – com tais pedagogias - que o controle humano, vindo da concepção antropocentrada, é que deveria estar em crise e incorporarmos essas dimensões do atravessamento da natureza em nossos cotidianos e possibilidades de encontros outros, mesmo que não idealizados por nós como sociedade. Extirpar, quem sabe, essa vaidade humana, ou seja, essa ideia fixa que fazemos de nós mesmos, o que pensamos ser, esquecendo-nos de outras companhias nessa viagem cósmica, como nos alerta Krenak [11]. Assim também começamos a trilhar terrenos moventes e incertos, através das experiências de estágio em tempos pandêmicos...

Heloísa A. Matos Lins
Campinas, 07 de fevereiro de 2021.
(Até este dia, o total oficial de mortos pela Covid-19 é de 230.034)

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[5] A partir das contribuições de Boaventura S. Santos, em A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
[6] A esse respeito, ver a discussão e referências ao tema em LINS, H.A.M.; CABELLO, J.; BORGES, C. Direito à participação política de crianças sobre a escola: algo mudaria em função da pandemia?. Sociedad e Infancias, v. 4, p. 243-249, 30 jun. 2020. Disponível em: https://revistas.ucm.es/index.php/SOCI/article/view/69637 . Acesso em 06.2.2021.
[7] 
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[8] SANTOS, B.S. O fim do império cognitivo. 1ª. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
[9]  KRENAK. Idem. (p.155)
[10] Programa oficial da disciplina EL 774 – Estágio Supervisionado I, oferecida nos cursos de licenciatura da FE-UNICAMP, com projeto por mim proposto: “Pedagogias da diferença e educação para os direitos (não/pós) humanos”.
[11]  Idem